Banhada

O grupo parlamentar do PS apresentou, na Assembleia da República, um pedido para a alteração à Lei nº 54/2005, que […]

O grupo parlamentar do PS apresentou, na Assembleia da República, um pedido para a alteração à Lei nº 54/2005, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos.

Ao que parece, considera não estarem criadas condições para a legalização, por parte dos proprietários dos terrenos no Domínio Público Hídrico, até ao final deste ano (altura em que termina o prazo legal para esse efeito), pedindo então uma “agilização dos procedimentos administrativos, de forma a evitar processos litigiosos entre proprietários e o Estado.

Vai daí, pedem também uma prorrogação do prazo, a par de outras medidas dilatórias (está na moda), para evitar a clarificação desta questão fundamental para o ordenamento territorial da orla costeira e, subsequentemente, para a segurança e integridade de pessoas e bens.

Tenta-se mistificar o assunto, revestindo-o de elaborada teorização e considerações diversas.

Mas a coisa é simples.

Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade nestas áreas (leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis) só tem que fazer prova documental de que os terrenos eram, por título legítimo, propriedade particular ou comum antes de 1864, ou antes de 1868, no caso de arribas alcantiladas.

Portanto, ou tem papelinho, e é, ou não tem papelinho, e não é!

E isto desde 1892! E com revisões em 1919 e 1926, bem como uma regulamentação geral revista em 1971, que se manteve em vigor até 2005, data em que saiu a actual legislação, já incorporando os ditames comunitários.

8 anos, 42 anos, 87 anos, 94 anos, 121 anos!

São 121 anos, gente!

Deu tempo para passar da Monarquia para a República, deu tempo para Gago Coutinho e Sacadura Cabral voarem (!) até ao Brasil, deu tempo para duas Guerras Mundiais, deu tempo para ir à Lua, deu tempo para uma revolução, deu tempo para perdermos um Império, deu tempo para mudar o Mundo do avesso, deu tempo para a informação se propagar em tempo real!

Deu tempo para tudo. Só não deu tempo para regularizar as ocupações em Domínio Público Hídrico em Portugal…

Seja por irresponsabilidade atávica ou manha geneticamente entranhada, só não tratou quem não quis saber! São quase 5 gerações! O trisavô não sabia, o bisavô não acreditou, o avô não quis saber, o pai achou que já não valia a pena, e agora o filho não teve tempo?

Isto cola?

Nem considerando que, apesar de simples, o processo não tem nada de fácil, coisa que ninguém nega.

Por isso mesmo, se tivéssemos responsáveis políticos… responsáveis, o pedido seria de reforço dos meios humanos e técnicos da Agência Portuguesa do Ambiente, de forma a que possa dar uma resposta mais eficaz e atempada às solicitações.

Seria difícil levar tal pedido a sério, porque enquanto Governo (que, por acaso, publicou a legislação e o respectivo prazo) não trataram de nada, mas enfim, pelo menos tinha melhor aspecto…

Quanto ao receio dos processos litigiosos, se não fosse tão revelador do estado a que o Estado chegou, seria para rir. Reconhecer que os Tribunais não dão resposta, é assumir o falhanço de um dos principais e mais importantes órgãos de soberania num Estado que se diz democrático e de Direito.

Enquanto andamos nestas manobras de diversão, popularuchas porque o que não falta são ocupações irregulares do Domínio Público Hídrico (quem não gosta de acordar com os pezinhos na areia, ou com uma varanda sobre o rio?), milhares correm perigo, e a nossa rede hidrográfica e a nossa costa degradam-se.

É que é nestas zonas que se fazem sentir, de forma mais efectiva, fenómenos como inundações, ondulação marítima intensa, derrocadas, enxurradas ou fenómenos erosivos extremos, entre outras formas de animação biofísica.

E, nesses fenómenos, magoa-se e morre gente, perdem-se bens, e torra-se o erário público a tentar (frequentemente em vão, ou a prazo) proteger o que ali não deveria estar.

Isto para além da questão do Domínio Público Hídrico constituir, em absoluto, um reconhecimento de áreas fundamentais à estabilidade biofísica como autêntico património comum, algo raro num Pais tão dado ao individualismo e aos quintais.

E ainda há quem queira protelar a resolução deste conflito insustentável?

Li algures (literatura de manif, talvez) que há políticos que são de tal forma parecidos com tesouros, que só apetece enterrá-los.

É uma grande maldade, pelo que não vamos por aí, mas que estas atitudes deixam um grande sentimento de banhada, deixam…

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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