As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região – Lagos, Monchique e Portimão

Face à calamidade que se abatera sobre o Algarve, na sequência de dois anos consecutivos de seca, o governo foi […]

Face à calamidade que se abatera sobre o Algarve, na sequência de dois anos consecutivos de seca, o governo foi forçado a agir, para minimizar a catástrofe que ameaçava aniquilar os algarvios.

Assim, por determinação governamental o governador civil de Faro, José de Beires, visitou todo o distrito, entre 23 de Maio de 10 de Junho de 1875, recolhendo informações sobre o real estado agrícola e social da província, bem como eventuais medidas, para atenuar a fome e sede que aterrorizavam os nossos trisavós.

Nesta sequência e após percorrer Vila do Bispo e Aljezur, dirigiu-se para Lagos, onde, a 28 de Maio, segundo o periódico local “Gazeta do Algarve”, à semelhança dos concelhos anteriores e subsequentes, José de Beires se reuniu com a Câmara, Conselho Municipal, os 40 maiores contribuintes, párocos e regedores das freguesias.

Lagos era então o maior produtor de figo do Algarve, arrolando também uma importante produção de amêndoa. Todavia, ambas as colheitas ameaçavam ser ainda mais diminutas que no ano anterior, de má memória.

As figueiras, definhadas, quase não haviam rebentado e as esparsas e mal desenvolvidas folhas já se encontravam amarelecidas, como se estivéssemos no Outono.

Pelo exposto, estimava aquele magistrado que a colheita média atingiria, quando muito e caso a longa estiagem não tolhesse o pouco fruto que apresentavam, a quarta parte de uma produção regular.

 

No concelho de Lagos, já eram visíveis árvores secas, sendo que um dos maiores produtores locais estimava o valor da perda de figueiras e amendoeiras na ordem de 1:000$000 réis.

Por outro lado, como lembrava José de Beires, o progressivo aumento do calor nos meses de Verão poderia causar a morte a grande parte do arvoredo adulto, inviabilizando, caso se concretizasse, as colheitas durante vários anos, o que constituiria “o maior de todos os prejuízos”. Vejamos agora, guiados pelo seu relato, os prejuízos em cada freguesia.

Em Bensafrim:
“É a freguezia que confina com a serra, e que menos prejudicada se acha com a falta de chuvas. O arvoredo (figueiras) comquanto apresente um aspecto pouco productivo, não se tem perdido. Os cereaes serão um terço a menos de uma colheita regular. As sementeiras serôdias é que não produzirão a semente”.

Se, na área serrana do concelho, as consequências da estiagem não eram avassaladoras, o mesmo não acontecia junto ao litoral.

Na Luz:
“O arvoredo, principal riqueza d’esta freguezia, acha-se consideravelmente deteriorado, e algum está já perdido. As searas em péssimo estado. As únicas soffriveis são as que se encontram nas terras limpas de arvores, nas proximidades de Espiche e Almadena, e que constituem uma insignificante parte da freguezia. A producção media de cereaes foi calculada em duas sementes; e a do figo na quarta parte de uma producção regular. Do serôdio, nem a semente.”

Quanto à freguesia de Odiáxere:
“Arvoredo em geral pouco promette. As searas pela maior parte não produzirão a semente, só as que se acham nas varseas dão esperança de dobrar a sementeira. Os serôdios, ainda mesmo chovendo, pouco ou nada produzirão.”

 

Por fim as freguesias da cidade, em Santa Maria:
“É a freguezia que se acha em peiores circumstancias, por ser aquella onde apparece mais considerável perda de arvoredo. As searas nem feno produziram, são colhidas á mão, e assim levadas aos palheiros. Dos legumes nada ha a esperar.”

Em S. Sebastião:
“O arvoredo em mau estado. As searas só no paul produzirão 3 a 4 sementes, quando a producção regular é de 12 a 15. No resto da freguezia poderá esperar-se, quando muito, uma semente. A agua vae escasseando nas noras e poços.”

Os lacobrigenses, principalmente do litoral, estavam duramente afetados pelo longo estio, não só pelas parcas colheitas de cereais, mas também pela perda de arvoredo, inexistência de produtos hortícolas e até o abastecimento público poderia estar em causa a breve trecho.

A tudo isto juntavam-se os salários, que haviam descido comparativamente com anos anteriores. Quanto a medidas de mitigação, José de Beires sugeria a construção do primeiro lanço da estrada distrital de Lagos a Aljezur, o qual permitiria “occupar muitos braços disponíveis e remediar muitas necessidades”.

Feito o diagnóstico em terras de São Gonçalo, o governador prosseguiu para Monchique. Este concelho, pela sua localização serrana, apresentava algumas singularidades, desde logo não tinha amendoeiras ou figueiras, então a principal riqueza do Algarve, no entanto não era pobre, antes pelo contrário.

Nele abundavam castanheiros e pomares de laranjeiras, pereiros e outras árvores, as quais, face à abundância de nascentes de água, eram irrigadas frequentemente.

Em resultado, abastecia de frutas e madeiras de castanho toda a região, além de exportar quantidade expressiva para outros locais. Note-se que a reputação dos peros de Monchique chegou aos nossos dias.

A tudo isto e em oposição ao Baixo Algarve, ali havia chovido naquele Inverno, embora não tanto como o habitual, encontrando-se algumas nascentes esgotadas. José de Beires calculava que a disponibilidade de recursos hídricos apenas permitia irrigar metade dos terrenos, relativamente a anos regulares, existindo nos monchiquenses algum temor pela perda de árvores.

 

Observemos agora os principais danos em cada freguesia.

Sobre o Alferce escreveu o governador:
“É a freguezia menos productora do concelho. Tem cultura insignificante de cereaes, milho e feijão. Todas as sementeiras apresentam soffrivel aspecto, especialmente depois das ultimas chuvas que ali caíram. O arvoredo, cultura principal, não está tão desenvolvido como nos annos regulares. Receiam os proprietários perda de fructo porque as nascentes vão seccando, faltando por isso agua para regar todo o arvoredo”.

Na outra extremidade do município, em Marmelete:
“Tem boas searas, e as sementeiras serôdias podem dar uma producção regular, continuando a chover. O arvoredo, no mesmo estado do do Alferse”.

Quanto à vila:
Monchique tem poucas searas e essas soffriveis. O milho e feijão, como na freguezia do Marmelete. O arvoredo no mesmo estado. Alguns proprietários informaram ter já perdido algumas árvores, por falta de regas, e que o fructo é em geral escasso”.

Não obstante estas contrariedades, Monchique era o concelho menos atingido pela calamitosa seca.

Em situação diferente encontrava-se Vila Nova de Portimão, município examinado de seguida. Aqui abundava o pomar tradicional de sequeiro, a amendoeira, figueira e alfarrobeira, sendo os prejuízos provocados pela estiagem superiores aos de Lagos. Havia mais árvores secas e as que subsistiam apresentavam menos fruto, encontrando-se as folhas em queda adiantada, principalmente junto à costa.

As searas, na generalidade, nem feno haviam produzido, e sem ele faltava alimento para os gados. A juntar a tudo isto, os melhores terrenos apresentavam o pior aspeto.

 

Em termos de freguesias principiemos pela Mexilhoeira Grande, guiados pela pena daquele excursionista:
“A sua cultura principal é de arvoredo – figueiras, amendoeiras e oliveiras. Todas se acham em deplorável estado, havendo já a perda de muitas amendoeiras e figueiras. A producção d’estas será de uma vigessima parte de uma colheita regular. As oliveiras perderam toda a flor sem deixar fructo. Quanto a cereaes, bem poucos colherão um décimo de uma producção ordinária. A maior parte das searas apenas apresentam palha e tão curta que só pôde ser apanhada á mão. As sementeiras serôdias irremediavelmente perdidas”.

Já em Alvor:
“A sua riqueza principal consiste em vinhas. Apresentam abundância de cachos, mas receia se que a estiagem prejudique o seu desenvolvimento. As outras culturas não estão melhores do que as da freguezia da Mexilhoeira”.

Por fim, Vila Nova de Portimão:
“Exceptuando as searas da várzea do Boina, pertencente ao Reguengo, que estão superiores ás de um anno regular, todas as mais estão em idênticas circumstancias ás das outras freguezias. Do mesmo modo as sementeiras serôdias e o arvoredo, que em alguns sitios se acha já perdido”.

A situação económica e social dos portimonenses era pois periclitante, sem trigo, azeite ou frutos secos, a que se adicionava a ausência de forragens para os animais, quanto muito teriam uvas de Alvor. Ainda assim, por motivos que ignoramos, José de Beires não elencou qualquer medida de mitigação.

Melhor sorte não tinha Lagoa, na outra margem do Arade, para onde aquele magistrado se dirigiu, não pela ponte rodoviária, que se encontrava em construção desde o ano anterior, mas certamente pela barca de passagem, dado que primeira só ficaria concluída em Julho de 1876.

Mas estes eram outros constrangimentos de uma região em crise e sedenta de apoios para não sucumbir. Já em Ferragudo, o governador observou “as mais deploráveis condições” …

 

(continua)

Nota 1: As imagens utilizadas são meramente ilustrativas. Correspondem a postais ilustrados, da primeira metade do século XX.
Nota 2: Nas citações do jornal «Gazeta do Algarve», optou-se por manter a grafia e da época.

 

Clique aqui para ler a 1ª parte desta série de artigos sobre a seca de 1875.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita, engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, colaborador habitual do Sul Informação

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