Mil anos depois, o «Vaso de Tavira» voltou a casa

Mil anos depois de ter sido jogado para o lixo, o Vaso de Tavira voltou para o seu sítio. Esta […]

Mil anos depois de ter sido jogado para o lixo, o Vaso de Tavira voltou para o seu sítio. Esta misteriosa peça de cerâmica é, desde ontem, dia 23, a peça principal do Núcleo Islâmico do Museu de Tavira, situado na baixa da cidade, frente à Câmara Municipal.

O Núcleo foi inaugurado esta quinta-feira e o arqueólogo Manuel Maia, que em 1995, com a sua mulher, a também arqueóloga Maria Maia (falecida no ano passado), descobriu aquilo que viria a chamar-se «Vaso de Tavira», foi o guia das dezenas de pessoas que se acotovelaram para ver as peças expostas.

A peça de cerâmica, cuja interpretação tem gerado alguma controvérsia, sobretudo por não haver exemplos semelhantes no mundo islâmico, foi descoberta quase onde ela se encontra agora exposta, a dois metros de profundidade, feita em pedaços numa lixeira do século XI.

A descoberta deu-se em 1995, nas escavações no edifício da antiga Pensão Arcada, que o banco BNU queria adaptar para aí instalar uma agência. Mas só em março de 1996 o casal de arqueólogos começaria as escavações, devido a uma série de complicações e desentendimentos que aconteceram entre o BNU, proprietário do edifício, e o então IPPAR.

Mas, «18 anos depois», como foi salientado pelo atual e pelo anterior presidente da Câmara de Tavira, Jorge Botelho e Macário Correia, respetivamente, na inauguração de ontem, cá está o Núcleo Islâmico, que esta sexta-feira abre as portas ao público. E há muitas “peças” para ver neste museu, pensado e organizado de uma forma “clássica”.

 

A «brutalidade» de muralha

 

A primeira dessas “peças” é a própria muralha islâmica, construída em taipa ciclópica, uma mistura de areia, cal e pedras que torna a construção especialmente resistente. A muralha lá está, no meio do Núcleo Museológico, rebocada. É que, como disse Manuel Maia, «as muralhas eram rebocadas e nesta ainda descobrimos alguns pedaços do reboco original».

Para se chegar à constituição do reboco que agora foi usado no restauro, fragmentos do original foram analisados em laboratório, e a mistura atual baseia-se nos ingredientes e proporções do reboco feito originalmente há mil anos.

Mas, para mostrar do que é feito, o reboco atual apresenta uma espécie de janelas, que deixam os visitantes espreitar a constituição desta taipa militar.

A muralha, que tinha três metros de largura e dez de altura, foi uma das “peças” descobertas durante as escavações, como recordou Manuel Maia. «Esta brutalidade de muralha estava aqui, frente à Câmara Municipal, mas ninguém sabia disso», contou. No entanto, durante as medições feitas às dimensões do interior da antiga Pensão Arcada, o que se media por dentro tinha menos três metros do que o que se media por fora. «Havia três metros a menos e por isso fomos saber porquê». E lá estava a imensa muralha!

A muralha, além desse seu anonimato de séculos, escondida nas paredes das casas que se foram construindo em Tavira, tinha ainda outra característica interessante: o facto de, a determinada altura da sua existência ter sido aberto um buraco no seu interior para aí construir um poço. E é por essa abertura que hoje se faz o acesso entre a zona de entrada do Núcleo Museológico e o seu interior, onde estão as peças principais.

Ao «Vaso de Tavira», que ontem suscitou todas as atenções, já voltaremos. O espólio de cerâmica encontrado nas escavações neste local pelo casal Maia era constituído por peças «muito fragmentadas», porque, na verdade, se tratava de uma lixeira para onde eram atirados os utensílios partidos, que já não serviam no dia a dia.

Por isso, salientou o arqueólogo Manuel Maia enquanto guiava a comitiva na inauguração, «não vão ver aqui grandes peças». «Mas a qualidade dos fragmentos é de tal maneira que mostra a pujança económica e política que teve Tavira em finais do século XI e princípios do XII». Nesses tempos, Tavira era muito ligada ao «comércio e ao corso [pirataria] do Golfo de Cadiz». «Se calhar recebeu os refugiados da zona do Tejo, de Lisboa, de Palmela, de Alcácer», que fugiram dessa região para sul, expulsos pelas conquistas de D. Afonso Henriques. «Os mais ricos conseguem sempre fugir e provavelmente muitos fugiram para aqui», contou o investigador. Circunstâncias da história que explicariam a riqueza dos fragmentos de cerâmica encontrados durante as escavações arqueológicas.

 

O alguidar das conquilhas e a panela dos caracóis

 

Manuel Maia, do espólio que hoje pode ser visto no Núcleo Islâmico, destaca o «cantil do gato». É uma peça que, sublinha, «tem os olhos, os bigodes, as orelhas que são as asas, e atrás até tem desenhadas as espinhas que o gato comia».

Logo acima, na exposição, está uma floreira, que apareceu no mesmo nível de escavações que o vaso e o cantil e que é feita com o mesmo tipo de pasta cerâmica. De tal forma que, no restauro das peças, os especialistas tiveram que ocupar-se das três ao mesmo tempo, por nunca saberem se um fragmento pertencia a uma ou a outra. «Pensa-se que existiria uma oficina de cerâmica em Tavira responsável por estas peças», recordou Manuel Maia.

Mais à frente, no percurso de visita, está o alguidar das conquilhas e a panela dos caracóis. Ambas as peças cerâmicas foram encontradas partidas, mas com as cascas de conquilhas e de caracóis no seu interior. «Deve ter sido um petisco. O alguidar partiu-se quando estavam a comer e deitaram-no fora, com as cascas», resume o arqueólogo, levantando o véu de uma cena do quotidiano de há mil anos que poderia estar a passar-se agora.

 

O «Vaso de Tavira» e os seus mistérios

 

E voltamos, então, ao «Vaso de Tavira», assim mesmo, com maiúsculas e já se vai perceber porquê. O vaso é uma peça que tem despertado a curiosidade e o interesse de investigadores do mundo islâmico em toda a parte porque não há, até agora, paralelos conhecidos de algo assim. Por isso, antes de regressar a casa e ser exposto em Tavira, agora que o Núcleo Museológico abriu, esta peça já viajou muito – esteve em Paris, numa exposição do prestigiado Institut do Monde Arabe, em Almeria (Andaluzia, Espanha) ou em Lisboa, no Museu Nacional de Arqueologia, por três vezes. E esteve ainda em Silves.

Mas que vaso é este? Manuel Maia diz que se tratava de um «brinquedo», constituído por uma bacia grande, em cujos rebordos «estão aplicados bonecos», que comunicavam com a água que era posta na bacia.

Os bonecos são uma torre, uma tartaruga, um cavaleiro, uma mulher, «com seios, véu, diadema», um besteiro, um guerreiro, com escudo e lança, músicos, com tambor e adufe («e devia haver mais dois músicos»), e quatro animais – boi, cabra, camelo e carneiro, «os animais puros» para os muçulmanos.

Depois, nos lados exteriores da bacia, estão desenhados motivos fitomórficos (folhas) e uma rede «com peixes pendurados como se tivessem sido acabados de pescar».

Manuel Maia não tem dúvidas em afirmar que esta peça «revolucionou a arqueologia islâmica». É que os bonecos, «que parecem peças da Rosa Ramalho», são algo de único no mundo islâmico, já que o Corão proíbe a representação humana e de animais.

«Quando descobrimos este vaso ficámos absolutamente fascinados!», sublinhou o arqueólogo.

E o que era e para que servia este «Vaso de Tavira»? Segundo a interpretação do casal Maia, o vaso seria um brinquedo e a cena retratada pelas figuras representa «o rapto berbere de uma noiva».  «Os berberes não eram muçulmanos fundamentalistas. Tavira era habitada por indivíduos que não obedeciam às regras estritas do Corão, como o faziam os novos senhores Almoadas». E graças a essa desobediência, lá está a noiva, mil anos depois, ao lado do cavaleiro, mostrando a sua feminilidade nos seios, no véu, no diadema a coroar a sua cabeça.

O Núcleo Islâmico do Museu Municipal de Tavira situado por cima do Posto de Turismo – mas com entrada pela rua das traseiras, junto à Igreja da Misericórdia – abre a partir desta sexta-feira ao público. A entrada é gratuita para os tavirenses e custa 2 euros para os de fora (1 euro para reformados e estudantes). E vale bem a pena ir até à cidade para conhecer mais este motivo de atração.

 

 

Horário:

INVERNO – terça a sábado (das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30)
VERÃO (das 10h00 às 13h00 e das 15h00 às 18h30)

 

 

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