O inimigo silencioso

O monstro continuou invisível, calado, a transformar o verde em morte e a entrar silente nas casas através dos sapatos e a instalar-se, manhoso, no focinho e nas patas dos muitos cães que por aqui vivem com os seus amigos humanos

Existe um inimigo silencioso que habita os jardins, os passeios e os caminhos por onde o leitor anda, sozinho, ou até acompanhado pelas suas crianças ou animais de estimação: uma poluição invisível, muda e quiçá mortal. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o glifosato é considerado provavelmente carcinogénico em humanos e demonstrado cancerígeno em animais de laboratório.

Assisti recentemente, impávida, mas não serena, à aplicação do herbicida Catamaran na zona residencial onde habito e a minha mão sentiu-se impelida a escrever estas linhas.

A minha jovialidade matinal foi perturbada pela observação de um funcionário camarário, protegido com uma máscara, que aspergia, sem misericórdia, veneno nas pobres ervas incautas que decidiram — vá-se lá saber porquê… — nascer, no inverno, entre as frestas do passeio. Que mania incómoda esta que a Natureza tem de florescer, de espalhar o verde e perturbar, assim, o cinzento da cimentada natureza urbana!

Passadas menos de três horas, um grupo de crianças brincava nesse mesmo passeio. Sim, tenho o privilégio de viver num local onde a criançada (ainda) tem o hábito saudável de saltar e conversar no exterior.

Chamei-lhes a atenção relativamente ao perigo e ainda avisei alguns vizinhos para que não passeassem os cães.

Em nome do bom rigor, importa realçar que foi colocada uma sinalética informativa no início do procedimento, retirada escassas horas depois. Ou seja, só quem passou naquele instante da aplicação efetiva do herbicida teve conhecimento do facto.

Depois, o monstro continuou invisível, calado, a transformar o verde em morte e a entrar silente nas casas através dos sapatos e a instalar-se, manhoso, no focinho e nas patas dos muitos cães que por aqui vivem com os seus amigos humanos. Acontecerá, certamente, o mesmo no local onde o leitor habita.

Segundo informações disponíveis online no website da Quercus, «A toxicidade do glifosato não é ainda um facto científico consensual e estabelecido. Além do cancro, existem na literatura científica diversas publicações que ligam o glifosato a efeitos teratogénicos (defeitos de nascimento), desregulação hormonal, toxicidade hepática e renal e até autismo, mas muitos cientistas, nomeadamente os que têm algum tipo de ligação à indústria, discordam destes resultados. Na própria Autoridade Europeia de Segurança Alimentar, uma estrutura da Comissão Europeia, 62% dos especialistas que integram o painel de avaliação de pesticidas apresentam conflitos de interesse face às empresas cujos produtos estão a avaliar. De qualquer forma existem ainda muitas zonas de ignorância e incerteza que justificam uma profunda desconfiança face aos discursos de segurança das instituições oficiais».

Anseio pelo dia em que os conflitos de interesse não se sobreponham à saúde pública e ao ambiente.

Entretanto, a mobilização dos cidadãos no que concerne a esta questão é crucial. Podemos sempre fazer algo: utilizar a linha SOS Ambiente e Território (808 200 520), escrever aos autarcas, divulgar e sensibilizar. Muitas autarquias já deixaram o uso dos herbicidas.

Existem alternativas viáveis ao controlo de «plantas infestantes» sem o recurso a fitofármacos, que tanto matam as ervas como as abelhas, os escaravelhos, as formigas e qualquer outro pobre inseto que decida passear-se por ali.

Apesar de o glifosato ser o herbicida mais utilizado em Portugal e no resto do mundo, «as restantes alternativas químicas são tanto ou mais perigosas para todos os seres vivos».

É urgente abandonar estas práticas. Nestes momentos, recordo-me do meu avô e do seu sachinho: o Senhor António podia não gostar das ervas no passeio à frente da sua porta, mas sentia a necessidade de as arrancar com respeito. Já agora, o que pensarão os nossos potenciais futuros governantes sobre este assunto?

Mais informações: https://quercus.pt/campanha-autarquias-sem-glifosato-herbicidas/

 

 

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