Museu de Portimão revela peças arqueológicas descobertas no Arade por projeto inédito

José Gameiro: «exposição é um tributo há muito tempo devido a este grupo de pessoas que constituíram o IPSIIS»

José Sousa, junto ao “seu” touro – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Um touro, feito numa liga metálica onde o cobre predomina, é uma das peças em destaque numa vitrina da exposição “Histórias que o rio nos traz”, que abriu no sábado, 24 de Fevereiro, no Museu de Portimão. Trata-se de um ex-voto, da Idade do Ferro, com cerca de 2500 anos.

A bela peça arqueológica, que é uma das mais originais da exposição permanente do Museu, foi descoberta no ano 2000, por José Sousa, «naquele areal de Ferragudo, ao pé do Forte São João».

«Muitas das peças que estão aqui vieram daquela duna», recorda o achador, em entrevista ao Sul Informação.

José Sousa, topógrafo de profissão, é um dos fundadores da Associação Projecto IPSIIS, criada em 2001 e que reúne um grupo de pessoas que têm autorização específica para utilizar detetores de metais nos depósitos de dragados do rio Arade e da ria de Alvor, sob a tutela do Museu de Portimão.

«Comecei a recolher peças, logo nas dragagens de 1982 ou 1983, a nível individual. Na altura, havia a Comissão Instaladora do Museu, que tinha instalações ali na avenida do liceu, e levava peças que encontrava para lá. Já havia essa ligação ao Museu», recorda José Sousa.

Mas havia muitas mais pessoas que se dedicavam a esquadrinhar as dunas criadas pelos depósitos das dragagens feitas no rio Arade e o destino que davam ao que encontravam – materiais em madeira, cerâmica e metal, como moedas – «não era propriamente museológico», como recordou, na abertura da exposição, José Gameiro, hoje diretor científico do Museu de Portimão, e, desde os anos 80, membro fundador da sua Comissão Instaladora.

«Mais tarde, quando saiu a lei de interdição dos detetores de metais, formámos então o grupo IPSIIS, em colaboração com o Francisco Alves [arqueólogo subaquático, que foi o primeiro diretor do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática – CNANS], em que entrou também o Alberto Machado, e todas essas pessoas que colaboraram no grupo», continua a recordar José Sousa.

 

 

Em 2001, iniciou-se, assim, «um processo totalmente inédito, no quadro da Arqueologia Portuguesa, através de um protocolo de cooperação entre o CNANS, um grupo de populares da comunidade de voluntários de Portimão, dirigidos por José Sousa, Paulo Viegas e Eurico Cardoso, que se juntaram depois com outros elementos, denominado Projeto IPSIIS», explicou, por seu lado, José Gameiro.

Mas «o nosso modus operandi não era bem do acordo da tutela [a então Direção Geral do Património Cultural]. Teria que ter uma supervisão científica de outro género», conta José Sousa.

E então, em 2014, começou um inovador projeto de investigação, também pioneiro a nível nacional, intitulado “DETDA – Prospeção com detetores de metais nos depósitos de dragados do rio Arade e da ria de Alvor”, que junta institucionalmente a IPSIIS com o Museu de Portimão, «conferindo enquadramento e legitimidade científica às atividades a desenvolver», como explica Vera Freitas, uma das responsáveis pelo projeto.

O Museu de Portimão passa a constituir-se como «local de entrega, de receção, da totalidade do espólio», recolhido pelos detetores do grupo IPSIIS, «uma vez que, antes, o espólio ficava na posse daqueles que o encontravam e que eram seus fiéis depositários», salientou José Gameiro.

Com este projeto, a Associação Projecto IPSIIS tornou-se «no único grupo autorizado, a nível do país, a desenvolver atividades de prospeção com detetores de metais», salientou ainda o diretor científico.

E, passados tantos anos desde as últimas dragagens, o Arade ainda continua a revelar segredos? Ainda continuam a surgir peças?

«Sim. Embora em menos quantidade, mas continuam a surgir. Sobretudo depois de uma agitação maior do mar, de um temporal», revela José Sousa.

 

 

Ainda antes da abertura da exposição “Histórias que o rio nos traz”, que presta um tributo a este grupo de prospetores arqueológicos, mostrando peças que são, em alguns casos, inéditas para o grande público, José Gameiro recordou a figura de outro dos membros fundadores do IPSIIS, Frank Reinhardt, que faleceu em Novembro de 2021. José Sousa, que foi seu amigo e companheiro de prospeções, disse ao Sul Informação ter gostado muito da homenagem.

«O nosso amigo Frank foi um grande, grande colaborador do grupo. Numa altura em que nós não tínhamos tanta disponibilidade, até por motivos profissionais, ele estava sempre disposto. Sempre que havia uma obra, mais dragagens, ele ia lá ver, acompanhar aquilo. Foi uma perda enorme, não só a nível pessoal, como do grupo. A viúva do Frank estava ali e também gostou muito que ele fosse recordado».

Isabel Soares, arqueóloga e atual diretora do Museu de Portimão, em declarações ao nosso jornal, recorda que «boa parte da coleção foi recolhida por ele, porque era dos que tinha mais disponibilidade».

Aliás, acrescentou, José Sousa e Frank Reinhardt não são simples pessoas munidas de um detetor de metais, confiando na sua boa sorte para descobrir peças interessantes. «O José Sousa e o Frank são muito conhecedores dos materiais que recolhiam, designadamente moedas e selos de chumbo. Eles têm um conhecimento que poucas pessoas têm. São amadores – ou eram, no caso do Frank – mas investigam e preocupam-se com a salvaguarda do património».

José Gameiro, diretor científico do Museu, acrescentou, em declarações ao Sul Informação, que «esta exposição é um tributo há muito tempo devido a este grupo de pessoas que constituíram o IPSIIS».

 

 

A exposição temporária, que pode ser vista até 3 de Novembro próximo, conta com o apoio da Rede Portuguesa de Museus, na sequência de candidatura ao ProMuseus – Programa de Apoio a Museus, que para o efeito destinou 42.118,40 euros.

De todos os projetos aprovados pelo ProMuseus a nível nacional, este «vai ser o primeiro a ser executado», anunciou José Gameiro.

«Estamos no bom caminho e é um bom exemplo. Somos o primeiro projeto do ProMuseus a ser apresentado. Muito bem! De facto, a partir desta antiga fábrica de conservas, nós tornámo-nos, enquanto museu, numa contínua fábrica de histórias. E justamente esta é mais uma história que vamos contar. Mas, atenção, esta tem uma particular especificidade, tem características inovadoras, porque faz, no fundo, parte desse arquivo riquíssimo que é o nosso património náutico e subaquático, guardado pelo Rio Arade. E, que é preciso conhecer, investigar e valorizar».

Dividida em cinco núcleos, a exposição apresenta apenas algumas das mais emblemáticas peças metálicas descobertas pelos membros do IPSIIS ao longo de cerca de quatro décadas. Cada peça é mostrada também no seu contexto, por ilustrações muito bem concebidas (da autoria de Pedro Mota Teixeira e Sara Bairinhas, da Spiceship Studios), que facilitam a compreensão. Há moedas, um compasso marítimo, fivelas, selos, pesos de rede, objetos de adorno, balas, utensílios da vida a bordo dos navios ou nas margens do rio, objetos ligados ao sagrado.

Tudo vestígios de um passado, às vezes milenar, que demonstram que o Arade tem sido, desde sempre, uma via entre o litoral e o interior algarvio. Portimão, aliás, cresceu em estreita ligação com o porto abrigado que o seu estuário oferece.

 

 

O assoreamento do rio – e as obras que, entretanto, se foram fazendo no seu estuário, como a construção da marina – «tornou inevitável realizar extensas dragagens», recorda o Museu no folheto de apoio à exposição. Mais uma operação de dragagens está agora prevista para alargar o canal de navegação e a bacia de rotação, de modo a permitir a entrada de navios de cruzeiro de maiores dimensões no porto de Portimão.

As dragagens retiram enormes quantidades de lodo e areias do fundo do rio, depois depositadas nas praias. «Com esses sedimentos até então submersos, vieram também numerosos objetos arrancados ao seu contexto original, desde a pré-história até aos nossos dias», acrescenta o folheto.

E tem sido essa, precisamente, a matéria-prima do trabalho dos membros da Associação Projecto IPSIIS.

A exposição propõe ainda um jogo aos seus visitantes. Logo no átrio de entrada, há um ecrã com um quizz que mostra algumas das peças « cuja função é de difícil perceção» e desafia os jogadores a adivinhar para que serviam. Se não acertarem, não há problema, porque a visita à exposição responderá a todas as questões.

A comissão executiva da exposição “Histórias que o rio nos traz” é composta pelo diretor científico do Museu José Gameiro, e pelas diretoras do projeto DETDA, Vera Teixeira de Freitas e Isabel Soares.

Devido ao acompanhamento tutelar ao projeto de investigação, bem como pelo conhecimento que detêm sobre a história transversal do rio Arade, participam na exposição, enquanto comissários científicos, investigadores de várias entidades, nomeadamente Cristóvão Fonseca (Direção Geral de Património Cultural/Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática), Frederico Tatá Regala (Unidade de Cultura da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve), Carlos Pereira (Universidade Complutense de Madrid), Pedro Barros (Centro de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – UNIARQ), Rui Parreira (Grupo de Amigos do Museu de Portimão), bem como André Teixeira, (Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e Câmara Municipal de Portimão

 


O que é o projeto DETDA?

O objetivo central do projeto “DETDA – Prospeção com detetores de metais nos depósitos de dragados do rio Arade e da ria de Alvor” é assegurar a retoma dos trabalhos de prospeção de bens descontextualizados nos depósitos de dragados do rio Arade e da ria de Alvor, usando para este efeito detetores de metais.Esta atividade permite a salvaguarda de um espólio que, de outra forma, ficaria irremediavelmente perdido.

O trabalho de prospeção no terreno com detetores de metais é feito de forma voluntária pelos membros da Associação Projecto IPSIIS, cabendo às diretoras da intervenção – Vera Teixeira e Isabel Soares – supervisionar e enquadrar cientificamente as ações de prospeção e a recolha do espólio, a sua conservação e restauro, investigação e divulgação.

As disposições que enquadram as referidas atividades estão definidas num protocolo assinado entre o Museu de Portimão e a Associação Projecto IPSIIS, desenvolvido com a colaboração das antigas Direção Geral do Património Cultural (DGPC) e Direção-Regional de Cultura do Algarve.

O protocolo visa o enquadramento institucional e científico da atividade de prospecção com detetores de metais e recolha de bens arqueológicos descontextualizados em zonas delimitadas, bem como a produção de conhecimento científico sobre estes bens.

O protocolo surge na sequência do acordo de colaboração estabelecido em 2000, que vigorou até 2011, entre o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática do Instituto Português de Arqueologia e um grupo de cidadãos (Projecto IPSIIS).

Foi solicitado pela DGPC que o Museu de Portimão se associasse institucionalmente à Associação Projecto IPSIIS, conferindo enquadramento e legitimidade científica às atividades a desenvolver, e assim em 2014 nasce o projeto DETDA.

Todos os bens recolhidos no âmbito do DETDA são depositados no Museu até 48 horas após o seu achado, sendo que as atividades desenvolvem-se nas zonas do Domínio Público Marítimo correspondentes às praias e depósitos de dragados, nomeadamente o depósito de dragados de Alvor, Praia de Alvor, Praia da Torralta (Alvor), Praia dos Três Irmãos (Alvor), Prainha (Alvor), Praia do Alemão (Portimão), Praia do Vau (Portimão), Praia dos Careanos (Portimão), Praia do Branquinho (Portimão), Praia da Rocha (Portimão), depósito de dragados de Portimão, depósito de dragados de Ferragudo, Praia da Angrinha (Lagoa), Praia Grande (Lagoa), Praia do Molhe (Lagoa), Praia do Pintadinho (Lagoa), Praia dos Caneiros (Lagoa).

Os membros da Associação Grupo IPSIIS colaboram no desenvolvimento dos trabalhos em regime de voluntariado e sem honorários.

Este projeto não tem outras fontes de financiamento, para além dos meios e da logística fornecida pelo Museu de Portimão.

A metodologia de trabalho foi estabelecida pelos elementos da Associação Projecto Ipsiis, em articulação com a DGPC, o Museu e a DRC Algarve.

Os conhecimentos e a experiência relativamente às técnicas de registo e métodos de prospeção, realizados nos anos anteriores, contribuíram de forma significativa para a escolha metodológica.

Todos os materiais, devidamente georreferenciados, foram recolhidos e depositados no Museu de Portimão, à exceção dos materiais que não possuem valor histórico-arqueológico pela sua contemporaneidade.

Salienta-se que todos os materiais são entregues sem qualquer tipo de intervenção, conferindo ao Museu de Portimão o dever da sua conservação e restauro.

 

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