Cravos cultivados por Guilhermina em Tavira ajudaram a fazer o 25 de Abril

Os cravos que foram distribuídos por soldados e pessoas que estavam na Baixa de Lisboa, a 25 de Abril de 1974, eram “algarvios”

Guilhermina Madeira e ângela Rosa – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

No dia 25 de Abril de 1974, ao ver na televisão imagens dos cravos nas espingardas e nas lapelas dos soldados que fizeram a revolução e na mão de muitas das pessoas que a eles se juntaram na Baixa de Lisboa, Guilhermina Madeira confessa que não imaginou que aquelas flores eram as mesmas que, dias antes, tinham estado nas suas mãos e que foram por ela cultivadas no então chamado Posto Agrário de Tavira, atualmente Centro de Experimentação Agrária.

Mas a verdade é que aquele primeiro cravo que Celeste Caeiro ofereceu a um soldado em cima de uma Chaimite, na Rua do Carmo (e que acabou por se tornar o símbolo do 25 de Abril), assim como muitos outros distribuídos nesse dia, eram “filhos” de Tavira, criados pela equipa coordenada pela, à data, regente agrícola da estação experimental algarvia.

50 anos depois, Guilhermina Madeira e o seu testemunho são os elementos centrais do vídeo “‘Cravos de Abril”, que foi apresentado na sexta-feira, no Centro de Experimentação Agrária de Tavira (CEAT), bem como da iniciativa no âmbito da qual este trabalho surgiu, promovida pela Associação Ecotopia Activa, em parceria com o Movimento de Cidadãos pelo CEAT e Hortas Urbanas de Tavira.

A antiga regente agrícola, que entretanto tirou o curso de Direito e se estabeleceu como advogada em Évora, esteve presente na sessão de dia 1 de Março e contou ao Sul Informação como tudo se passou.

No final dos anos 60 e no início dos 70, quando a então muito jovem Guilhermina trabalhou no Posto Agrário de Tavira, esta estação de experimentação produzia «várias variedades de cravos e vendia a produção para vários sítios. Vinham aqui buscar, vendíamos para Lisboa, para um distribuidor», conta.

Além de cravos, também eram produzidas nas estufas ali existentes «tulipas, gladíolos e outras flores, bem como produtos hortícolas. E todas as semanas, às segundas, quartas e sextas-feiras, iam cestas de cravos para Lisboa».

 

Guilhermina Madeira - Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação
Guilhermina Madeira – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

A história de como o cravo se tornou um símbolo do 25 de Abril é bem conhecida e foi muitas vezes contada pela sua protagonista, Celeste Caeiro, que, na altura, trabalhava num café com serviço de self-service em Lisboa.

O então moderno estabelecimento comercial fazia um ano nesse dia 25 de Abril de 1974 e o patrão de Celeste encomendou cravos, para oferecer aos clientes. No entanto, uma vez que estava em curso uma revolução, o restaurante não abriu e o dono da casa ofereceu molhos de flores aos funcionários, para que não se desperdiçassem.

Celeste Caeiro, no seu caminho de regresso a casa, entabulou conversa com um soldado em cima de uma Chaimite, na Rua do Carmo, que acabou por lhe pedir um cigarro.

Como não tinha cigarros, pois não fumava, Celeste Caeiro ofereceu um cravo ao soldado, que o aceitou e colocou no cano da espingarda. Os restantes cravos foram distribuídos de seguida a outros soldados e pessoas que estavam na rua. O ato foi imitado por floristas que por ali também andavam, que também distribuíram os cravos que traziam.

«Nós vimos as flores, aqui na televisão, mas como a outra coisa qualquer. Nessa semana, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, o senhor Laranjeira, que nos recebia as flores em Lisboa, telefonou para cá a pedir para nós mandarmos o máximo que pudéssemos de cravos, especialmente vermelhos», recordou Guilhermina Madeira.

O comerciante de flores lisboeta «falou com o engenheiro Assunção, que era o subdiretor da estação agrária e era o responsável pela área da floricultura. E, na conversa que teve com ele, informou-o que foi ele que forneceu as floristas do Rossio, com os cravos que foram vendidos no 25 de Abril. Foi assim que soubemos».

Mas esta nem foi a primeira vez que os cravos do Posto Agrário de Tavira estiveram associados a um evento marcante na história de Portugal, até porque, na altura, não eram muito os produtores de cravos, em Portugal, e a produção que era feita em Tavira tinha caraterísticas «muito inovadoras».

«Ontem, em conversa com o meu marido, recordei-me que, quando o Papa Paulo VI veio a Fátima, em 1967, o andor da Nossa Senhora foi coberto por cravos brancos que vieram buscar aqui», revelou Guilhermina Madeira.

 

Ângela Rosa – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

A história dos cravos de Tavira que “engalanaram” a revolução foi resgatada às memórias de Guilhermina pelo historiador Ignacio García-Pereda, o autor da obra “O Posto Agrário de Tavira (1926-1974)”, que a entrevistou e descobriu este episódio.

«Na altura, pensei logo que esta era uma informação interessante para que fosse aberta uma linha de investigação no futuro», revelou o historiador, na sessão de apresentação e de estreia do vídeo “‘Cravos de Abril”, na sexta-feira.

Talvez por isso, há cerca de um ano, quando apresentou a sua obra sobre o Posto Agrário no CEAT, Ignacio García-Pereda contou a história.

«Eu estava nesta sala com outros membros do Movimento de Cidadãos e da Associação Ecotopia, quando soubemos que os cravos tinham saído daqui para Lisboa. E pensámos logo que esta história tinha de ser conhecida, tinha de ser do conhecimento geral», contou ao Sul Informação Ângela Rosa, presidente da Ecotopia Ativa.

A questão era como é que isso seria feito, ideia que acabou por surgir: «nada melhor do que plantar outra vez cravos no posto agrário, que já não se plantam há décadas, se calhar há quase 50 anos. E foi assim que nós nos reunimos, em comunidade».

O cultivo dos cravos iniciou-se em Agosto passado e, desde então, houve «uma rede de voluntários que regaram regularmente os cravos, às segundas, quartas e sextas-feiras, a quem devemos agradecer muito. Estes voluntários também cuidaram das flores».

«Registámos todo esse processo em vídeo e fomos à procura de ouvir as vozes, as testemunhas, desse facto histórico, nomeadamente da engenheira Guilhermina. Quisemos dar conhecimento a toda a gente do que se passou aqui», explicou.

 

Emília Costa – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Emília Costa, professora universitária na Universidade do Algarve, doutorada em Biotecnologia, também é associada da Ecotopia Ativa e esteve envolvida neste projeto.

«O que nós fizemos aqui foi cultivar novamente cravos e distribuí-los em Lisboa, na medida das nossas possibilidades. Neste momento, o vídeo está feito e há cravos cultivados ali na horta», disse, salientando que «a participação dos hortelãos foi extremamente importante».

«Temos uma nova produção e, no 25 de Abril, certamente haverá mais cravos para distribuir à população», disse.

Emília Costa foi, à semelhança de Ângela Rosa, um dos elementos do grupo envolvido neste projeto que teve a oportunidade de conhecer Celeste Caeiro, que hoje tem 91 anos. «Ela contou-nos novamente toda a história».

«Fomos entregar os cravos à dona Celeste Caeiro, um ato que foi muito comovente, ainda mais porque, naquele momento, nós percebemos mesmo que todo este símbolo do cravo surgiu de forma totalmente espontânea», reforçou Ângela Rosa.

Os cravos também foram entregues a uma antiga florista de Lisboa, «que naquela altura também participou na distribuição dos cravos. Ela vendia os cravos e conhecia o comerciante Laranjeira».

«Também entregámos flores às pessoas no Largo do Carmo, no Terreiro do Passo e no Rossio», acrescentou a presidente da Ecotopia Ativa.

«Os cravos tornaram-se um símbolo que defende a nossa democracia, a nossa liberdade. E essas flores foram cultivadas aqui, imagina», conclui Ângela Rosa.

O vídeo “Cravos de Abril” será publicado no mês de Abril. Entretanto, a associação irá ainda enviar ou entregar os cravos que plantou, como gesto de agradecimento, a personalidades de destaque ligadas à Revolução de 1974.

O vídeo produzido pela associação Ecotopia Activa e pelos Cidadãos pelo CEAT e Hortas Urbanas de Tavira contou com a colaboração da Associação 25 de Abril e o apoio do Município de Tavira e da CCDR Algarve.

 

Fotos: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

 

 

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