Vera Aldeias: com grãos de terra e biomoléculas se estuda o destino dos neandertais

Neste Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, aproveitemos para conhecer uma das mais destacadas cientistas na Arqueologia portuguesa

As lâminas delgadas são o principal objeto da investigação de Vera Aldeias

Tinha uma certeza: queria saber sobre a nossa origem e evolução. Para isso, pensou em estudar artefactos em pedra, mas a terra deu-lhe a volta e tornou-se a sua paixão. Por ela rumou aos Estados Unidos e com ela foi investigadora no Instituto Max Planck na Alemanha. Em 2022, foi a primeira investigadora portuguesa a ganhar uma bolsa do European Research Council (ERC). É investigadora no Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve, onde é também docente. 

São dez 10 horas de uma amena manhã no Algarve. No pátio do ICArEHB, estão sentados numa mesa de madeira, vários cientistas. À primeira vista, dir-se-ia que estão a fazer uma pausa para tomar café, mas na verdade trata-se de uma reunião de trabalho coordenada por Vera Aldeias.

Com entusiasmo e descontração traça-se a estratégia de um dos projetos de investigação desta que é já uma das mais brilhantes arqueólogas da sua geração. São também características da Vera que, com simplicidade, mas de forma muito cativante, fala da sua complexa investigação, financiada desde 2022 pelo ERC, e que procura compreender o que aconteceu aos Neandertais através do estudo de amostras de sedimentos recolhidos em sítios arqueológicos e do DNA, proteínas e lípidos neles preservados.

Vera Aldeias iniciou os seus estudos em arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1998, ano marcado pela descoberta da Criança do Lapedo, que precipitou uma série de mudanças na forma como se investigava a Pré-História em Portugal, nomeadamente a criação do Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências, onde a Vera viria a iniciar os seus estudos especializados em Geoarqueologia, disciplina que junta a Geologia à Arqueologia.

Nos primeiros anos de faculdade, a Pré-História rapidamente se tornou a sua paixão e as perguntas que sempre moveram a Vera rapidamente surgiram. Queria compreender o mistério acerca de quem eramos nós, antes de sermos nós, juntando as peças de um intrigante puzzle com a ajuda de outras ciências.

Ainda não era certo como iria responder a todas as questões que a fascinavam. Mas era certo que tinha em si as características que marcam toda sua carreira: curiosidade, persistência, autonomia e capacidade de sair da sua zona de conforto.

César Neves, colega de faculdade, recorda que a Vera não ia muito às aulas, mas «aprendia a matéria toda e conseguiria colocá-la bem explicada nos testes que fazia», era extraordinariamente focada e lia mais que todos os outros, partilhando tudo o que podia em boas conversas. As conversas de café são importantes para a Vera, «adoro uma boa conversa, o vai e vem do diálogo com significado, nem tem de ser muito intelectual ou científico».

Descobriu a paixão pelos sedimentos numa escavação. Quando se escava, tira-se terra, e estava a fazer isso irrefletidamente quando «chegou o Prof. João Pedro e começou a contar como era aquela paisagem no passado, quando e de onde é que aqueles sedimentos tinham vindo, como é que tinham chegado ali, se tinha sido a água, se tinha sido o vento…».

Surgiu então o fascínio de uma vida. Pensou naquele momento: «Nós estamos aqui a tirar toda a terra e a nossa informação é com base na terra» e recorda «para mim foi uma abertura por completo ao mundo de geologia que é o que chamamos de Geoarqueologia.»

Começou então uma história imparável de dedicação à ciência. A terra deixou de ser uma coisa que se tirava na escavação, sem que muita atenção lhe fosse dada, e tornou-se o centro de toda a sua atenção.

 

 

No virar de século, o curso de arqueologia estava ainda muito ligado à História e sem muita possibilidade de aprender sobre geologia, disciplina que haveria de se tornar tão importante, ainda que repita sempre «eu não sou geóloga, se for geologia do jurássico tenho zero interesse, porque o que eu quero é perceber o comportamento humano que também gera terra e sem estes estudos perdemos muitos traços da atividade humana preservados nos sedimentos».

Quando percebeu que queria estudar geologia, foi à sua procura noutros departamentos da universidade, procurou aprender sobre rochas e minerais no curso de geografia, e quando mesmo aí não estava satisfeita, arranjava soluções.

César Neves recorda que a Vera «Foi bater à porta do departamento de geologia da Faculdade de Ciências e disse: eu tenho um problema, não consigo estudar porque o departamento de geografia não me dá as rochas e os minerais e eu preciso de ver essas rochas».

Abriram-lhe as portas e juntos tiveram uma excelente nota no teste de geologia. César afirma que, desde que conhece a Vera, há mais de vinte cinco anos, «ela pergunta muito, está sempre a fazer perguntas e não fica satisfeita com uma resposta só, mesmo nas conversas mais simples».

Nos bancos da faculdade, queria ver granitos e moscovites, hoje, nos laboratórios do ICArEHB, mostra, com enorme entusiasmo, num potente microscópio eletrónico as delgadas lâminas de sedimento de Bacho Chiro, um dos mais importantes sítios arqueológicos na Europa, por conter os restos físicos dos mais antigos Sapiens (a nossa espécie e a única que atualmente habita todo o planeta) que aqui chegaram vindos de África.

Dessas lâminas, com a sua equipa, vai extrair e analisar ADN, proteínas e lípidos para tentar perceber o que aconteceu neste momento tão importante da nossa história.

A investigadora explica que «há comunidades Sapiens que chegam à Europa, num momento que ainda há neandertais, mas também sabemos pela genética que não são essas as populações que depois ficam na Europa. Eles próprios também se vão embora e se extinguem aqui. E depois chegam outros. Portanto, é quase como as ondas do mar numa praia, que vão e vêm num conjunto de interações.» Interessa-lhe entender essas interações em finas camadas de terra formada num reduzido período de tempo, 5 mil anos, que «em termos geológicos é um piscar de olhos».

O seu projeto, Matrix, financiado pelo ERC, pretende mapear a substituição dos neandertais pelos primeiros humanos modernos, olhando para as biomoléculas nos sedimentos que são invisíveis aos nossos olhos.

Procura também responder a outras questões, já que «nós ainda não sabemos muito bem quais são as partículas nos sedimentos que nos fornecem ADN e se variam de sítio para sítio. E são pequenos ossos ou restos de excrementos ou é ADN livre que está preso aos minerais como as argilas. Nós não sabemos. Também não sabemos em que condições se depositou esse ADN e como se preserva melhor, tudo isso é fulcral porque o ADN nos sedimentos não se pode datar».

As respostas irão permitir constituir um banco de dados único. Esse é também um objetivo para esta investigadora que diz: «gosto muito dos dados, gosto do método científico e de ir além da discussão de ideias que muitas vezes caracteriza a arqueologia».

 

Vera Aldeias com Paul Goldberg

 

Fazer pontes entre diferentes ciências é uma competência que domina bastante bem. Paul Goldberg, geólogo e professor na Universidade de Boston, orientou a sua tese de doutoramento e trabalha até hoje com Vera Aldeias, referindo que «ela é muito boa a sintetizar e consegue recolher informação de muitas coisas diferentes e juntá-las. É boa na Geologia que aprendeu do zero e conhece profundamente a arqueologia.»

Para este investigador, a bolsa de 2 milhões de euros que recebeu em 2022 não foi surpresa, «para uma investigadora tão persistente e focada era expectável».

A ideia deste projeto de «alto risco e alto ganho», como explica a Vera, surgiu nos cinco anos em que trabalhou como investigadora no Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck, na Alemanha, e onde diz ter tido o privilégio de trabalhar «rodeada de pessoas de todas as áreas que têm uma cabeça efetivamente fantástica, o que nos faz crescer muito. É tudo no mesmo sítio e muito com esta ideia de “vamos fazer coisas que não nunca foram feitas”».

De facto, extrair biomoléculas de amostras recolhidas em sítios arqueológicos e transformadas em blocos, inclusive há vários anos e, entretanto, guardadas nos laboratórios e museus, nunca foi feito. A Vera e o Paul pensaram fora da caixa e propuseram aos colegas de Genética integrar a Geoarqueologia.

Não sabiam se iria funcionar, porque o processo de tratar as amostras poderia alterar a preservação das biomoléculas. Mas tentaram e, «quando percebemos que todos os processos de preparação dos blocos, não influenciavam, pelo contrário, até ajudavam a preservar o ADN e auxiliavam na sequenciaçãom aí foi a sensação de: epá isto muda tudo!! Foi uma bomba!»

Antes e ser investigadora no Max Planck, esteve seis anos a estudar nos Estados Unidos, onde fez o seu doutoramento na Universidade da Pensilvânia. Foi um desafio sair da zona de conforto, ir para longe e estudar num departamento de Ciências da Terra quando toda a sua formação tinha sido em Humanidades. «Os primeiros anos foram duros», afirma.

Contudo, esta experiência foi determinante para crescer como cientista e como pessoa. Aqui encontrou a liberdade mental de ter as suas próprias ideias, discuti-las num ambiente sem hierarquias desenvolvidas e que acolhem ideias contrárias, estimulando a argumentação. «Fui motivada a colocar questões e tive a sorte de não ser obrigada a pensar tal e qual como o meu orientador», conta a Vera e acrescenta: «há, por lá, uma coisa que eu acho que é importante que é sempre esta ideia de puxar para a inovação, não fazer mais do mesmo e conseguir estar sempre a adaptar-se às novas coisas.»

Ao todo, foram 11 anos fora de Portugal até regressar em 2017 à Universidade do Algarve, onde dirigiu o centro de investigação ICArEHB durante um ano. Não porque não tenha tentado ficar no seu país. Tentou várias vezes concorrer a bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), mas não conseguiu.

Hoje diz, com muita tranquilidade, que «tudo isso não foi mau, porque me obrigou a sair e talvez eu também não estivesse preparada para aquelas bolsas». De resto, para esta investigadora, o normal no mundo académico é não conseguir, «são no do máximo 10% das hipóteses de sucesso. Quer dizer que normalmente temos de concorrer 10 vezes até conseguir».

Já o seu amigo de faculdade, César Neves, refere com humor que «eu digo sempre à Vera que a FCT foi a sua melhor amiga, porque levou-a a ir para fora, concorreu aqui, não deu, e foi sempre para coisas melhores com a convicção de que aqui não dá».

 

Imagem do trabalho do projeto Matrix

 

Não ter resultados com a FCT são águas passadas, já que em 2018, viu o seu projeto FLAME sobre o fogo no Paleolítico, ser financiado, e em 2023 foi nomeada para integrar o Conselho Científico das Artes, Humanidades e Ciências Sociais desta fundação. O seu percurso leva-a a ter «opiniões de como a ciência deve ser feita, até porque estive fora e em vários locais e acho que temos espaço para melhorar se ouvirem os cientistas portugueses».

Acerca da forma como se faz ciência em Portugal, confessa que «as coisas fazem-se, mas é a batalhar sempre muito e com atraso. Não é da forma mais eficiente, isso é importante para projetos de ciência de ponta e então somos facilmente ultrapassados».

Mais considera que «as Universidades portuguesas, em certo grau, não estão preparadas, podendo ser eficazes, não são eficientes», há demasiada burocracia, e acrescenta que «existem muitas pessoas a apoiar, mas no conjunto a máquina não trabalha para nos ajudar».

Apesar disso, em 2023, na atualização do ranking “World’s Top 2% Scientists list”, disponibilizada pela Universidade de Stanford (Califórnia, EUA), 18 cientistas da Universidade do Algarve encontravam-se entre os mais citados a nível mundial. Claro que a Vera é uma destas cientistas.

Quem vê de fora, poderia que o percurso foi sempre ascendente, afinal a Vera tem apenas 43 anos, mas não foi, houve momentos de dúvida. A investigadora diz que «Estamos sempre a duvidar de nós, mas seguimos em frente porque crescemos com a dúvida e isso é parte importante do percurso de um investigador». Se dúvidas houve, pensar em desistir é algo que perentoriamente diz nunca lhe ter acontecido.

Nota-se.

A Vera tem hoje as condições para desenvolver a sua inovadora ideia que levará a revolução do ADN na Pré-História ainda mais longe. É o sonho de qualquer cientista.

O árduo trabalho, a criatividade e a capacidade de fazer pontes entre várias ciências foram reconhecidas, mas estavam lá desde os bancos da Faculdade de Letras. Mesmo assim, se lhe perguntam qual foi o momento mais feliz da sua carreira, a Vera viaja até 2005, quando ainda nem era estudante de doutoramento, e na escavação de Jebel Irhoud, em Marrocos, descobriu o que hoje se sabe ser o mais antigo crânio de Homo Sapiens. Vera descreve esse como «um momento foi espetacular, nem teve impacto na minha carreira, mas fui eu a escavadora que o descobriu e até estou nos agradecimentos na publicação que fizeram na Nature!»

Corre entre os arqueólogos que Che Guevara, nas suas viagens por África, terá convivido com arqueólogos e deles terá dito que «são eternas crianças». É um pouco isso que a Vera guarda dentro de si, faz ciência ao mais alto nível, mas fala dela com o brilho nos olhos que só encontramos naquelas pessoas que se movem com o entusiamo de uma criança cheia de curiosidade e alegria.

 

 

Autora: Sara Cura é Comunicadora de Ciência

 

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