A semana de trabalho flexível

A grande prioridade para as próximas décadas será o alinhamento entre coesão social, trabalho flexível e atratividade dos territórios

A cultura digital e a inteligência coletiva das redes não só reclamam um pensamento mais crítico, como nos conduzem em direção a novos códigos de comunicação e linguagem.

A interação entre comunidades online e comunidades offline é uma fonte inesgotável de ensinamentos e aprendizagem, por isso, falamos, também, de comunidades cognitivas que aperfeiçoam constantemente os seus modelos de inteligência coletiva.

Finalmente, é bom insistir no lado preventivo e terapêutico destas comunidades, pois não podemos esquecer o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam.

Nesta fase de transição, não é demais alertar para as perversões que os novos modelos de negócio podem implicar e estar atentos, por isso, aos efeitos não-intencionais e danos colaterais que lhes são inerentes.

Este é o ambiente em que entronca o debate sobre a semana de trabalho flexível e o teletrabalho, mas, também, o fenómeno emergente da chamada grande renúncia e as novas dimensões do mercado laboral que lhe estão associadas.

O capitalismo pós-industrial compreendeu muito cedo esta mutação radical e transmutou-se, ele próprio, em duas faces. De um lado, um capitalismo tecnológico feito de ambientes simulados e virtuais e, do outro, um capitalismo criativo e cultural onde prevalecem a inteligência emocional, os sentimentos partilhados e as contribuições criativas para o trabalho coletivo.

De certa forma, é um regresso a uma ética do trabalho comunitário e a uma inteligência colaborativa interpares, se quisermos, o regresso do governo dos comuns, tão bem descrito por Elinor Ostrom (1990).

Imagine-se, por exemplo, o potencial colaborativo e a inteligência coletiva que habitam as redes empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de inovação social e as redes amigas do ambiente, as redes artísticas e culturais, entre muitas outras.

Ora, neste regresso a uma filosofia dos bens comuns, ao autogoverno das regras e à utilidade social do respeito, a ponderação da semana de trabalho flexível é uma lufada de ar fresco para a correção das desigualdades e do progresso social, no sentido da coprodução, cogestão e consumos partilhados de bens e serviços da chamada economia colaborativa.

É neste contexto que se insere a chamada Grande Renúncia, uma atitude e uma filosofia de vida mais diferenciadas e seletivas em relação ao universo laboral e ao mercado das profissões, mas, também, em relação à participação sociopolítica por parte daqueles que hoje protagonizam maioritariamente a sociedade digital.

Falo, em especial, dos talentos criativos nas áreas das ciências e tecnologias, artes e cultura, da sua topoligamia e ubiquidade no que diz respeito às suas opções socioprofissionais e sociofamiliares e estilo de vida.

Mas não os reduzo aos nómadas digitais, pois a sociedade em rede pode proporcionar uma combinação de pluriatividade e plurirrendimento a todos aqueles que possuem várias competências e qualificações.

Com efeito, há hoje muitos fatores que condicionam as escolhas dos jovens mais qualificados e empreendedores mais criativos, que podem justificar uma grande renúncia profissional, familiar, social e política, entre os quais se podem alinhar: as baixas remunerações, a sobrecarga de trabalho e as jornadas de trabalho pouco flexíveis, a baixa progressão nas carreiras e expetativas profissionais, o baixo reconhecimento por parte das chefias e lideranças e a baixa autonomia em matéria de decisão pessoal, as poucas oportunidades de treinamento e capacitação profissionais para projetos mais ambiciosos, a falta de benefícios e incentivos ajustados ao desempenho e produtividade profissionais, assim como, a oferta de bens e serviços aos colaboradores para lá do objeto especifico da empresa.

Para lá, obviamente, dos inúmeros incentivos académicos e profissionais que são proporcionados pela liberdade de circulação no âmbito da União Europeia e no universo anglo-saxónico.

Na verdade, a semana de trabalho flexível e tudo o que gira à volta das redes e das práticas descentralizadas e distribuídas combinam bem com a filosofia dos bens comuns e opções como a pluriatividade, por exemplo, o trabalho de voluntariado em bancos do tempo, trabalho independente de prestação de serviços, trabalho dependente a tempo parcial e ainda outras ocupações e participações nas áreas artísticas e culturais.

Infelizmente, estamos ainda longe de uma economia bem articulada entre bens públicos, bens privados e bens comuns que nos poderia proporcionar uma gama muito alargada de possibilidades de composição socioprofissional, sociofamiliar e sociocultural.

Nesta linha de pensamento, a coesão territorial e a inclusão social padecem de alguns efeitos externos que poderíamos designar por ângulos mortos. Esta questão dos ângulos mortos será, de resto, um dos temas mais fortes no debate público dos próximos anos, sobretudo no que diz respeito à natureza da coabitação entre bens públicos (estado), bens privados (mercado) e bens comuns (comunidade).

É nesta coabitação virtuosa que a economia criativa pode fazer germinar um novo metabolismo social inovador onde entram como inputs o património e a paisagem, a ciência e tecnologia, a arte e a cultura, mas, também, a solidariedade social, o combate contra as desigualdades, a saúde pública e o envelhecimento ativo.

É o momento para desindustrializar a misericórdia, a pobreza, a saúde pública e a velhice e para promover a economia da inovação social e do emprego em nome da dignidade da pessoa humana e da ética dos comuns.

Nota Final

Aqui chegados, é preciso não confundir dois planos analíticos. Por um lado, há inegáveis progressos e inteligência coletiva muito diversificada em ambientes empresariais modificados e simulados, em espaços comuns de criação artística e inovação social, em resultado da organização de comunidades online e plataformas colaborativas.

Todos eles desenvolvem aplicações e funcionalidades muito diversas que importa aprofundar e monitorizar. Por outro lado, é forçoso reconhecer que estes progressos ainda não se traduzem em melhorias estruturais de natureza colaborativa na sociedade política em geral.

Desde logo, na promoção da literacia digital e na proteção do trabalho independente e do emprego intermitente.

Depois, há manifestações hostis no espaço público, em especial no universo das redes sociais, que podem arrastar consigo a tribalização de comportamentos na rede.

Finalmente, o défice de cultura colaborativa e solidária precisa de ser rapidamente preenchido, pois é determinante para fundar um sólido movimento social se quisermos consolidar uma ética do bem comum de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas que esteja para lá do mero negócio digital.

Em síntese, a grande prioridade para as próximas décadas será o alinhamento entre coesão social, trabalho flexível e atratividade dos territórios.

Em discussão, estarão os bens comuns, o combate contra as desigualdades sociais e a sustentabilidade do progresso económico.

Se não houver equidade neste combate e respeito pela causa da dignidade humana., a Grande Renúncia, sob múltiplos pretextos e formas (a emigração), poderá pairar sobre o futuro da democracia e a coesão social das nossas sociedades.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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