“Kalasha”: um livro contado por quem decidiu «sair da caixa aos 50»

“Kalasha” conta a história da vida quotidiana e cultura desta minoria politeísta que vive nas montanhas do Paquistão

Ana Abrão com uma criança do povo Kalasha. Foto: © Ana Abrão

São 162 fotografias, distribuídas por 144 páginas, onde Ana Abrão, uma mulher que decidiu «sair da caixa aos 50», conta 13 histórias da vida quotidiana e cultura dos Kalasha, uma minoria politeísta com quem viveu durante três meses nas montanhas do Paquistão.

Psicóloga de profissão, Ana apenas se começou a dedicar à fotografia há 15 anos, mas, se fosse hoje, «começava a ser fora da caixa aos 21 e não aos 50».

Ana, luso-brasileira, com 57 anos, que vive em Albufeira há 23, não sabe ao certo quantos países já conheceu, mas aponta para mais de 30. O que sabe é que, para onde quer que vá, será «um destino pouco convencional».

Depois do sucesso do primeiro livro, “Outros Mundos”, que conta a história de comunidades, etnias e países diferentes da Ásia, Ana percebeu que as aventuras que viveu agora nesta nova viagem, também na Ásia, mas em contacto com a cultura Kalasha, dava uma nova criação, capaz de fazer as pessoas «calçar os seus sapatos» e partir nesta aventura.

Apesar de já ter viajado muitas vezes acompanhada, nestes casos, quando vai para trabalhar, Ana Abrão prefere ir sozinha.

«Vou com liberdade e com planos muito básicos mesmo, porque tento fazer algo que seja original e o mais real possível. Acompanhada não produzo. O que penso antes é se há potencial, se há uma comunidade, minoria étnica, com uma identidade própria e tradicional e se ela tem características únicas na sua forma de ser, na sua organização social, que interessa conhecer e dar a conhecer», conta ao Sul Informação.

 

Foto: © Ana Abrão

 

Desta vez, para chegar perto da comunidade Kalasha, Ana teve de atravessar uma cadeia de montanhas no norte do Paquistão, apanhando transportes partilhados «que é o que é possível». Chegada à última paragem, teve de passar por «uma aventura».

«Perdi o contacto da única pessoa com quem tinha falado previamente para me acolher, porque lá não há hotéis nem nada», conta a fotógrafa, referindo que a sorte foi ter conhecido, na viagem, o chefe da vila, que acabou por ser quem lhe deu guarida.

Para Ana, esta foi uma oportunidade única porque, «estando com o chefe da vila, tenho autorização para fazer as coisas. Se não, teria que bater à porta dele e pedir autorização para ir participar nas cerimónias, rituais, fazer visitas às pessoas (…) tinha de pedir autorização para tudo».

Ana Abrão viveu cerca de três meses com a comunidade Kalasha e foi preciso ganhar confiança para conseguir fotografar.

«Eu acordava sem planos, a não ser que para o dia estivesse previsto acontecer alguma coisa. Quando não havia nada, eu saía pela vila, fazia caminhadas ou visitava as escolas. Nas escolas, tentava interagir com as crianças: se eram muito pequeninas, eu cantava música, se eram maiores, eu fazia brincadeiras – e isso, a introdução pela escola, ajuda a quebrar resistência nas famílias».

 

Foto: © Ana Abrão

 

Aos poucos, Ana foi ganhando a confiança do povo e recorda as primeiras fotografias que conseguiu tirar e estão no livro.

«Houve um dia em que cheguei à vila e fui convidada para comemorar o nascimento de um bebé, que tinha acontecido no dia anterior. Havia pão com queijo e na casa da senhora estava tudo tão bonito, tão rústico…».

Nesta casa, Ana estranhou a ausência da mulher e do filho, tendo-lhe sido explicado que não podiam ali estar.

«O filho do chefe da Vila explicou-me que as mulheres, quando estão no período menstrual ou no pós-parto, têm de estar num local de isolamento porque a menstruação é considerada impura. Não podem conviver com ninguém nem tocar em objetos e só podem voltar a conviver com a comunidade passados 15 dias, depois de passarem por um ritual de purificação», conta.

O que Ana não sabia é que não podia também ela estar em contacto com estas mulheres e regressar à vila sem ser purificada.

«Eu fui sem saber que eu não podia ter ido e, quando o chefe da vila soube, ficou extremamente agressivo, aborrecido comigo e desorientado. Ninguém vai lá, foi a primeira vez que isso aconteceu na comunidade e ele disse que eu agora tinha levado todas as impurezas para a vila».

Foram momentos de grande tensão, em que Ana achou que ia ser expulsa da comunidade, mas tudo acabou por se resolver através de um ritual que a fotografa espelha no livro, com vídeo e som.

 

Apesar destes acontecimentos, Ana frisa que nunca sentiu medo.

«O Paquistão foi surpreendente também por isso. É um país com muito mau nome, muito mal falado e sem turismo, praticamente, mas, de todos os países para onde já viajei, foi dos que me fez sentir mais tranquila».

E como se toma a decisão de que está na hora de voltar? Neste caso, a fotógrafa viu-se obrigada a regressar ao Algarve depois de sofrer um ferimento na perna devido a uma queda.

Entre Outubro de 2022 e Janeiro de 2023, quando chegou Portugal, passaram-se três meses que deram origem a material «com muito potencial».

Questionada sobre como é depois regressar ao dia a dia, Ana explica que «a vida não muda», mas vive-se com «mais conhecimento e aprendizagens».

«Viajar para lugares fora da caixa amplia a visão do mundo, mas na chegada, o primeiro impacto é o valor que se dá ao conforto que temos aqui. Estas viagens são duras, mas a questão mais difícil é a do banho», confessa.

Chegada a Portugal, Ana Abrão agarrou-se ao material que tinha e começou a escrever as histórias do livro “Kalasha”, que, por se tratar de uma edição de autor, se encontra à venda no site.

 

Foto: © Ana Abrão

 

Até agora, Ana já fez oito apresentações e diz que «está a correr muito bem».

Ao Sul Informação confessa que um dos objetivos destas obras é também mostrar às pessoas um mundo que elas, por vezes, não têm coragem de conhecer.

«As minhas viagens são uma espécie de celebração à liberdade, no sentido íntegro da palavra, uma liberdade que não é libertinagem, mas uma liberdade que vem de dentro, de poder descobrir o mundo sem as regras sociais, julgamento e pressão daqui. Se pararmos para pensar, nós vivemos muito em função do que as pessoas esperam de nós e fazem muito julgamento do que fazemos correto ou incorreto e viajar é ver o mundo com outras regras».

Apesar de agora querer fazer uma pausa nas viagens para descansar, Ana Abrão diz ainda ter uma lista grande de sítios para conhecer.

«Se fizer estas viagens aos 60, eu vou deixar que as pessoas vejam que há uma mulher, com 60 anos, que anda aí pelo mundo pronta para conhecer e aberta para se conectar com as pessoas».

Para quem gostava de fazer o mesmo, a fotografa deixa um conselho: «As pessoas estão muito presas ao medo e a única parte difícil é tomar a decisão, mas quando chega o momento em que dizemos “é isso, eu vou”, não tem mais que ter receio porque as coisas fluem umas atrás das outras, mesmo que apareçam receios».

O livro de Ana Abrão custa 35 euros e pode ser adquirido aqui.

 

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