Sepulcros pré-históricos de Monchique e Alcalar com lugar de destaque em congresso internacional de Megalitismo

Os municípios têm um papel fundamental, em articulação com as universidades e outras entidades da chamada sociedade civil, na definição de políticas promotoras das suas singularidades patrimoniais

O Dólmen de Soto, descoberto e objeto de escavações há 100 anos – Créditos: Ayuntamiento de Trigueros

A região algarvia conta com notáveis monumentos pré-históricos, destacando-se Alcalar pela sua monumentalidade e os sepulcros das Caldas de Monchique pela sua singularidade. Ambos tiveram lugar de destaque no VII Congresso Internacional de Arte Rupestre e Megalitismo, realizado em Trigueros (Huelva).

Desde há vários anos que o Município de Trigueros, na vizinha província espanhola de Huelva, tem mantido de pé a organização regular de congressos internacionais sobre arte rupestre e megalitismo, num dinamismo raro de se observar em municípios de pequena dimensão, seja do lado de cá, como do lado de lá da fronteira.

No caso de Trigueros, este esforço tem sido aplicado num notável monumento pré-histórico, o Dólmen de Soto, que, por decisão consciente e deliberada de uma comunidade neolítica de há seis mil anos, foi construído naquele preciso local, no centro de extensas planuras — terras de cereal que deram origem ao nome desta simpática vila — que ainda hoje, como ontem, impressionam pela sua vastidão.

O que faz um município, com menos de oito mil habitantes, investir os seus recursos (e carinho) no cuidado e valorização de um antigo sepulcro em pedra, afastado da vila, para onde se acede apenas por estradas rurais?

Porque, embora Trigueros seja uma vila rica em tradições, com concorridas festas populares e belíssimos edifícios religiosos e privados, o Dólmen de Soto é no entanto, por si mesmo, um património de relevância não só local ou regional, mas internacional.

Ora, neste ano de 2023 cumpre-se o centenário da sua descoberta e dos seus primeiros trabalhos arqueológicos. Como não podia deixar de ser, havia que comemorar esta efeméride.

 

Comité científico do congresso de Trigueros no debate final – Créditos: Ayuntamiento de Trigueros

 

Assim, nos dias 14 e 15 de novembro, realizou-se a sétima edição daquele congresso, desta vez consignada ao “Descobrimento e biografia dos grandes megálitos do sudoeste ibérico”.

Tratou-se de uma ambiciosa, mas exemplar, organização conjunta que envolveu, não só o Município de Trigueros, como também a Junta da Andaluzia, a Diputación de Huelva, e as Universidades Complutense de Madrid e de Huelva, tendo estado presentes, como diretores científicos e académicos, os professores José Antonio Linares Catela e Juan Carlos Vera Rodríguez, das respetivas universidades.

O objetivo foi, aproveitando e valorizando esta efeméride, reunir num mesmo evento um conjunto de 26 investigadores de seis países (Alemanha, Espanha, França, Portugal, Reino Unido e Suécia), que têm vindo a trabalhar no estudo do Dólmen de Soto, a levar a cabo projetos de investigação sobre outros monumentos clássicos do megalitismo do sudoeste da Península Ibérica ou de outras regiões do continente europeu.

O sucesso desta iniciativa pôde ver-se também na assistência do público não especialista: 128 pessoas presencialmente e 20 por videoconferência, de diversos países europeus e sul-americanos.

Sem entrar em detalhes sobre as conferências apresentadas, cujos autores e títulos ainda se encontram disponíveis online (por exemplo, na página de Facebook do Município de Trigueros e no site www.trigueros.es), merece destaque terem estado presentes três grandes projetos de investigação sobre estas realidades do sul do território português, mais concretamente do Alentejo e Algarve.

Sobre a primeira região, Ana Catarina Sousa tratou do “Megalitismo(s) no Alentejo (Portugal): das pesquisas do casal Leisner (1929-1972) à situação atual”, num trabalho também assinado por Victor S. Gonçalves.

Estes pré-historiadores da Universidade de Lisboa têm dirigido escavações arqueológicas em sepulcros megalíticos, mas, nesta comunicação, deram especial atenção, numa perspetiva historiográfica consentânea com o tema da edição deste ano do congresso, ao labor do casal alemão Georg e Vera Leisner, que, durante aquelas décadas, se dedicou ao estudo deste fenómeno no Alentejo e, também, no Algarve.

 

Encerramento dos trabalhos do congresso com todos os comunicantes em palco – Créditos: Ayuntamiento de Trigueros

 

E foi precisamente sobre o Algarve que se debruçaram as outras duas comunicações. Uma tratou dos notáveis monumentos de Alcalar, em Portimão, em que se fez um repasso da longa investigação (quase) continuada que tem vindo a ser levada a cabo nestes grandes sepulcros-templo — que dispensam apresentação — desde a sua descoberta, ainda no século XIX.

Intitulou-se “Biografia dos edifícios sob túmulo do povoado de Alcalar: 143 anos a quebrar silêncios”, e foi-nos trazida por Elena Morán Hernández, do Museu de Lagos, e Rui Parreira, da Direção Regional de Cultura do Algarve. Os autores não puderam deixar de referir, e bem, o esforço a que muito especialmente se têm dedicado na reabilitação e valorização destes monumentos com cinco mil anos, que, como é sabido, se encontram abertos ao público e podem ser visitados usufruindo das infraestruturas já há anos construídas para o efeito no local.

A outra comunicação, apresentada pelo autor destas linhas, intitulou-se “Nos 70 anos dos ‘Estudos Arqueológicos das Caldas de Monchique’. Novos dados sobre a fase neolítica”, e teve um duplo objetivo. Tal como no caso do Dólmen de Soto, assinala também uma importante efeméride: os 70 anos da principal publicação realizada sobre estes sepulcros, homenageando assim o contributo dos três grandes pioneiros da arqueologia monchiquense.

É a Abel Viana, o grande impulsionador destes trabalhos, a O. da Veiga Ferreira, geólogo dos então Serviços Geológicos de Portugal, e a José Formosinho, que empresta hoje o seu nome ao Museu de Lagos, que devemos o persistente estudo, realizado entre 1937 e 1949, deste autêntico território sagrado pré-histórico que rodeia, se calhar não por acaso, aquelas fontes termais da Serra de Monchique.

 

Os autores das escavações nos sepulcros das Caldas de Monchique em fotografia de 17 de setembro de 1947. Da esquerda para a direita, José Formosinho, O. da Veiga Ferreira e Abel Viana (fotografia gentilmente cedida por João Luís Cardoso)

 

Ao contrário, porém, de Soto ou de Alcalar, estes sepulcros são de pequenas dimensões, “pobres” em objetos arqueológicos, “escondidos” em esplanadas de meia-encosta da serra mas usufruindo de uma notável vista sobre o litoral atlântico.

Ao que sabemos, foram construídos em época ainda mais recuada que aqueles monumentos. Estes factos levaram diversos pré-historiadores de meados do século XX, portugueses e não só, a considerar que nestes singelos mas antigos sepulcros podemos estar perante a origem, os protótipos, dos grandes túmulos de tipo dólmen.

Só que estes peculiares testemunhos desse passado remoto foram lentamente caindo no esquecimento. Por esta razão, o segundo objetivo da comunicação foi também apresentar os resultados das escavações que se puderam recentemente retomar em Monchique, pondo fim a essas décadas de quase esquecimento.

Estes novos trabalhos de campo, ainda não concluídos, foram encetados por iniciativa do próprio Município em colaboração com a Universidade do Algarve no âmbito do projeto “MEGA Monchique”, aprovado pela Direção-Geral do Património Cultural.

Os trabalhos permitiram já obter um inesperado e importante volume de dados científicos que serão publicados no decorrer de 2024 em obras da especialidade. Os principais resultados foram sendo também divulgados junto do grande público, nomeadamente nas páginas do Sul Informação, onde podem ser relidos.

No final, a organização do congresso, através do seu comité científico, produziu um balanço sintético do mesmo, muito breve mas onde se propuseram algumas ideias sobre opções e estratégias para a preservação, reabilitação e valorização do património megalítico da Península Ibérica.

Sobressaíram duas ideias-base. Uma, é que é possível, mesmo por parte de municípios de pequena escala territorial ou demográfica, empreender projetos de valorização do seu património arqueológico, sobretudo se possuírem elementos especialmente monumentais ou singulares de interesse internacional (e não tão-somente de escala local ou regional).

Os sepulcros pré-históricos algarvios de Monchique e de Alcalar, tão diferentes quanto complementares entre si, e por essas razões ambos convidados a estar presentes nas comemorações do Dólmen de Soto, estão nessa escala maior.

 

Apresentação do balanço dos resultados obtidos no projeto de investigação “MEGA Monchique” – Créditos: Ayuntamiento de Trigueros

 

Outra ideia base é o recurso a projetos de colaboração formal entre “territórios megalíticos” distintos, por vezes separados por fronteiras político-administrativas modernas, para a sua promoção conjunta, articulada.

A criação de rotas no âmbito de convénios — desde logo, transfronteiriços — para a valorização destes monumentos, promovendo intercâmbios e carreando mais-valias de variadíssima ordem, é uma possibilidade de valorização não só dos monumentos arqueológicos em si mesmos, mas dos próprios territórios envolventes, especialmente naqueles classificados como de baixa densidade.

Não foi por coincidência que, na véspera do congresso, tenha tido também lugar em Trigueros uma assembleia geral das “Megalithic Routes”, uma rota cultural do Conselho da Europa de que o Dólmen de Soto faz agora parte.

A título mais pessoal, tenho tido a oportunidade de colaborar formalmente com comunidades intermunicipais e diversos municípios portugueses, do Algarve e não só, enquanto docente e investigador destes temas na Universidade do Algarve.

Esta minha experiência tem-me vindo a permitir constatar o papel fundamental que os municípios, em articulação com as universidades e outras entidades da chamada sociedade civil, podem ter para a definição de políticas solidamente promotoras das suas singularidades patrimoniais e assim catalisadoras de eventos e ações concretas de grande alcance.

Sei bem que estas são palavras a que estamos há muito habituados a ler e ouvir. Hoje, porém, parecem finalmente corresponder a um amplo movimento, por enquanto ainda silencioso e difuso, mas que está gradualmente a crescer, a expandir-se e a ganhar forma.

 

Autor: António Faustino Carvalho é professor da Universidade do Algarve, arqueólogo e autor de diversos livros e artigos científicos sobre Neolítico

 

 

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