Escavações arqueológicas no cerro do Castelo de Alferce voltam a surpreender

Mais uma campanha de arqueologia está em curso até 8 de Setembro

O copinho (ou tacinha) pré-histórico na mão do arqueólogo  – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

«Olha lá isto!». Humberto Veríssimo aproximou-se quase a correr, a cara a escorrer suor e cheia de terra, segurando algo na mão. «Mostra lá», disse Fábio Capela, com curiosidade. Humberto abriu a mão e mostrou o que parecia ser um pequeno copo, em cerâmica, intacto, apesar de ter uns 4000 anos.

«Que coisa mais linda!», exclamou uma das jovens arqueólogas.

José Manuel Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia de Alferce, que ali estava como voluntário, de picareta na mão, brincou: «Isso é capaz de ser um copinho para o medronho».

O arqueólogo Humberto Veríssimo riu-se, mas respondeu: «isso não seria, porque na pré-história ainda não havia bebidas destiladas. Podia era ser um copinho de uma bebida fermentada, tipo uma cerveja pré-histórica».

Ao lado, a jovem arqueóloga mantinha o tom de brincadeira: «é uma tacinha da Barbie pré-histórica».

Mais sério, o arqueólogo Fábio Capela, responsável pelo projeto de investigação em curso no cerro do Castelo de Alferce, na serra de Monchique, explicou ao Sul Informação, cuja repórter acompanhou em direto a descoberta desta milenar peça cerâmica: «vamos examinar os sedimentos que estão dentro deste recipiente, para tentar saber mais sobre a sua função e o que terá contido».

Perante a brincadeira de que a descoberta do copinho teria sido encenada para agradar à jornalista, Fábio negou. «Na entrada do castelo, que agora já se vê muito bem e é da época califal [século X/XI], estamos a escavar um nível abaixo, que nos tem dado muito material, de várias épocas. Na segunda-feira, tivemos cá a visita da secretária de Estado da Cultura e encontrámos um testo, uma tampa, provavelmente de uma talha islâmica, quando a senhora cá estava».

«Sob a fundação do castelo, estamos a encontrar peças cerâmicas intactas ou quase, do Bronze do Sudoeste, ou seja, de entre finais do 3º milénio e meados do 2º milénio antes de Cristo». Peças com 3500 a 4000, portanto.

 

Taça carenada pré-histórica, quase intacta – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Há taças carenadas (uma delas «quase inteira, só com uma falhazinha no bordo»), ou seja, taças com uma espécie de saliência em forma de quilha, a toda a volta (ver foto acima). Há também taças globulares, de confeção mais simples. E agora há aquele misterioso copinho, também em cerâmica.

Em todos os casos são peças feitas com pastas cerâmicas «escuras» e algo grosseiras, «completamente distintas das do mundo islâmico», explica, entusiasmado, o arqueólogo Fábio Capela.

Ainda feitos em cerâmica, têm surgido pesos de tear.

Foram também encontradas algumas, poucas, peças metálicas: a ponta de um punhal e uma espécie de agulha que poderá ser a ponta de um fuso, ligado à tecelagem, ou um punção. Neste caso, a agulha, que está agora bem acondicionada numa embalagem estanque, «poderá ser em cobre, bronze ou latão». O material exato será determinado por investigação posterior.

O arqueólogo Humberto Veríssimo explica, por seu lado, que este ano os trabalhos têm sido emocionantes, porque «peças completas estão a aparecer em sítios em que não estávamos à espera».

O copinho de cerâmica, por exemplo, surgiu «num monte de pedras, entre raízes das árvores». «Como é que conseguiu sobreviver estes milhares de anos sem um risco?», interroga, com os olhos a brilhar.

As raízes são, aliás, um dos inimigos quer das estruturas das muralhas e casas, quer das próprias peças. Mas às vezes há milagres. Como o de uma das taças que, «num dos lados, tem uma canelura feita pela raiz que lá estava metida, quando a encontrámos. A pouco e pouco, foi moldando a tacinha».

 

Escavações arqueológicas em curso – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

No Projeto de Investigação Plurianual em Arqueologia intitulado “Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce”, que começou em 2020 e que, portanto, já vai na sua quarta campanha consecutiva de escavações arqueológicas, este Verão o objetivo, segundo o arqueólogo municipal da Câmara de Monchique, que coordena os trabalhos, foi «finalizar as sondagens do ano passado e abrir novas ou ampliar as existentes».

A equipa, que inclui arqueólogos, estudantes e voluntários, está a escavar junto ao castelo central, que datações radiocarbono de restos de fauna (ossos) aí encontrados indicam ter sido construído em finais do século X.

Numa zona fora desse castelo, junto às muralhas mais antigas que envolvem toda a estrutura, uma nova sondagem permitiu não só encontrar paredes de uma casa, como, num nível abaixo, «os primeiros silos» descobertos em todo o recinto.

São dois silos, escavados na terra, e que se destinariam a guardar alimentos, provavelmente cereais. Quando foram abandonados, há largas centenas de anos, foram colmatados com fragmentos de cerâmicas, pedras, terra. Nesses silos, os arqueólogos encontraram um «fundo de cântaro inteiro, fragmentos de panelinhas», tudo dos séculos IX/X.

São vestígios do período emiral, o período islâmico mais antigo de ocupação deste cerro, perto da aldeia de Alferce, no coração da serra de Monchique.

Todos esses fragmentos foram retirados com cuidado e irão agora ser analisados, até para «determinar o que se guardava nestes silos».

Mais acima, na entrada do castelo, que agora já se vê na totalidade, Fábio explica que foram desmontados «dois acrescentos, que seriam contrafortes, um bocado construídos à pressa, talvez na sequência de estragos provocados por um sismo. No século XI, quem estava cá construiu, à pressa, esses contrafortes, para impedir que a estrutura ruísse mais».

Depois de retirar esses contrafortes para poder aceder a níveis mais abaixo e perceber melhor o desenho original da entrada, agora vai ser necessário fazer «uma intervenção de emergência, na entrada e aqui neste tramo no interior da muralha». Tudo para evitar que, o que não aconteceu há 1000 anos – a derrocada –, aconteça agora. «Se não se fizer nada, isto vai colapsar».

Em princípio, o trabalho será feito por técnicos e trabalhadores da própria Câmara de Monchique, mas o arqueólogo coordenador também está em contacto com uma empresa especializada, caso seja necessária a sua intervenção.

 

O podomorfo na superfície da rocha granítica

 

Num dos cantos nordeste da estrutura muralhada mais antiga, há uma rocha granítica, natural, coberta de líquenes, que ostenta um podomorfo, ou seja, aquilo a que popularmente se chama «um pezinho de bebé» escavado na superfície.

Fábio Capela explica que estes podomorfos são característicos da «pré-história recente, mas também do período medieval islâmico», por isso não será fácil determinar exatamente quando este foi feito.

No entanto, esclarece o arqueólogo, com base em casos semelhantes, «estes podomorfos estão sempre relacionados com indicações de direção». No caso, este pezinho parece apontar para nascente.

Tendo em conta que a rocha fica à beira de uma estreita passagem, semi escondida entre outros blocos naturais de granito, que tudo indica ter sido uma «quase porta da traição» do recinto muralhado mais antigo, este podomorfo poderá, segundo o arqueólogo, indicar a direção de «Córdoba [onde estava a capital do poder Omíada], a ribeira, a fuga, onde nasce o sol».

A adensar o mistério, a superfície da rocha granítica ostenta também uma série de covinhas, cuja função ou datação se desconhece ainda. Só agora estas covinhas estão a ser estudadas, até para saber se a forma como se organizam na superfície pétrea corresponde a alguma constelação astronómica, como por vezes acontece. Isso vai agora ser investigado, após um levantamento rigoroso por fotogrametria.

«Nem sequer sabemos se as covinhas e o podomorfo são do mesmo período, pode tratar-se de uma reutilização deste painel de pedra».

 

A voluntária Joaninha ao centro – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

A campanha de escavações arqueológicas no cerro do Castelo de Alferce, a curta distância da aldeia com o mesmo nome, começou em meados de Julho e vai prolongar-se até ao fim da corrente semana.

Além de Fábio Capela, arqueólogo do Município de Monchique, que coordena os trabalhos, e da coordenação científica de Susana Goméz Martínez, arqueóloga do Campo Arqueológico de Mértola e professora da Universidade de Évora/CEAACP, há ainda quatro outros coordenadores: Daniela Maio, arqueóloga contratada pela Câmara e membro do ICAREHB da Universidade do Algarve, Beatriz Pinto, também da Universidade do Algarve /CEAACP, cujo trabalho é pago pela Associação de Arqueologia do Algarve, Humberto Veríssimo, que está a fazer o seu doutoramento na UAlg, e José Vinagre, que está a fazer o seu mestrado precisamente sobre este sítio, na Universidade de Évora. Na equipa de arqueólogos há ainda Nuno Ribeiro, da Universidade Autónoma de Lisboa.

No início de Agosto, o cerro do Castelo de Alferce acolheu também estudantes da Universidade do Algarve, já que estas escavações arqueológicas foram consideradas como campo-escola.

Depois há os voluntários. «As pessoas aqui da freguesia e do concelho manifestam um orgulho crescente por este sítio arqueológico e querem ajudar».

No dia em que o Sul Informação visitou o local, até o presidente da Junta de Freguesia de Alferce lá estava, como voluntário, de picareta na mão, a levantar pedras caídas de uma zona da muralha.

Mas não estava só: o seu filho Daniel, de 14 anos, era outro dos voluntários, a par da Joaninha, que já lá tínhamos encontrado no ano passado e que tem agora 12 anos. Por lá têm estado também a Jéssica, de 11 anos, e o Ricardo, de 10, todos habitantes de Alferce.

 

Fábio Capela é o arqueólogo coordenador dos trabalhos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Mesmo não estando ainda muito publicitado, o sítio arqueológico já é visitado quase todos os dias por turistas – nomeadamente pelos caminhantes que percorrem o novo passadiço e a ponte suspensa sobre o Barranco do Demo, um percurso que começa na aldeia de Alferce e termina aqui, no alto do cerro, após uma dura subida.

«Muitos metem conversa connosco, querem saber o que estamos a fazer e de que sítio arqueológico se trata», conta Fábio Capela.

Em breve, as visitas serão facilitadas, com a abertura do Centro Interpretativo em Alferce e a colocação, no sítio arqueológico, de placas explicativas. Haverá ainda uma plataforma-miradouro, sobranceira à vertente nascente do cerro.

O prazo deste projeto termina no Verão de 2024, mas o arqueólogo municipal pretende garantir a sua prorrogação, porque «ainda há tanto para fazer aqui».

Além das questões de «conservação e restauro» que é preciso assegurar, «no próximo ano, queremos escavar no outro lado, na torre ainda não escavada», até para
«retirar pressão» sobre a zona da entrada.

Quando a campanha de escavações deste Verão terminar, a 8 de Setembro, essa zona será coberta com geotêxtil e uma camada de terra, «para tapar e proteger as fundações». Mas, garante Fábio, «já dará para vir aqui visitar».

Além da integração do cerro do Castelo de Alferce num novo circuito de visita turístico-cultural do concelho de Monchique (e do Algarve), o arqueólogo responsável pelos trabalhos tem outra ambição: «atualmente o cerro está classificado como de interesse público, mas, no futuro, temos de equacionar pedir a reclassificação para monumento nacional. Isto merece!».

Se tal acontecer, será o primeiro monumento nacional do concelho de Monchique. E merece mesmo.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Projeto de investigação envolve várias entidades

O Projeto de Investigação Plurianual em Arqueologia intitulado “Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce”, promovido pela Câmara de Monchique, está em vigor desde 2020, em parceria com as Universidades do Algarve e de Évora e o Campo Arqueológico de Mértola, e com o apoio da Junta de Freguesia de Alferce e da Associação Arqueológica do Algarve.

O Cerro do Castelo de Alferce é um povoado fortificado que ocupa uma elevação rochosa com 487 metros de altitude máxima, na serra de Monchique. O sítio arqueológico é composto por três recintos amuralhados não concêntricos, sendo que o vulgarmente chamado Castelo de Alferce corresponde ao recinto fortificado superior, onde estão a decorrer as investigações.

A fortificação era constituída por três ordens de muralhas: um fortim superior de tipo qasr (alcácer), uma cintura de muralhas a cerca de 36 metros do fortim e uma terceira cerca a rodear todo o cerro, com cerca de 9 hectares de área intramuros.

Além da ocupação islâmica-omíada (séculos IX-XI d.C.), o cerro contém vestígios arqueológicos enquadráveis na Pré-História Recente, nomeadamente na Idade do Bronze (II milénio a.C.).

 

 

 

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