Castelo de Alferce revela os seus segredos em mais uma campanha arqueológica

Nova campanha de escavações contou com voluntários inesperados

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

A Joaninha tem 11 anos e mora no Alferce. Com a Isa, de 12 anos, também moradora da aldeia, ela é a mais jovem voluntária da campanha de escavações arqueológicas que decorreu, desde princípios de Agosto até hoje, 2 de Setembro, no cerro do Castelo de Alferce.

Sentada na terra, de luvas e com um pico na mão, a Joaninha escava, com todos os cuidados, um pequeno espaço na zona que se sabe hoje ter sido a entrada norte da estrutura fortificada construída durante a ocupação islâmica-omíada, dos séculos IX-XI d.C.

Ao seu lado, a jovem tem um saquinho de plástico, onde vai guardando os fragmentos de cerâmica que vão surgindo no meio da terra. Muito concentrada, de repente repara num pedaço de cerâmica com um formato interessante, levanta-se e vai mostrá-lo a um dos arqueólogos, para saber se poderá ser algo importante.

«Há muitos estudantes de arqueologia ou até arqueólogos que não têm o cuidado que a nossa Joaninha tem, com estas cerâmicas», comenta Fábio Capela, o arqueólogo da Câmara Municipal de Monchique e responsável por mais esta campanha no cerro do Castelo de Alferce.

A Joaninha, que passou para o 7º ano e estuda na Escola EB 2,3 de Monchique, em conversa com o Sul Informação, diz: «gosto de escavar e gosto das pessoas que estão aqui. Consigo descobrir coisas novas e até já aprendi muito com eles». No entanto, confessa, o seu sonho não é ser arqueóloga: ««estou a gostar disto, mas o que eu quero é ser médica».

Além das duas muito jovens e aplicadas voluntárias, os trabalhos contaram com a colaboração de vários alunos de arqueologia das Universidades do Algarve, Évora e Nova de Lisboa, bem como da Universidade Simon Fraser, do Canadá.

Há ainda outros voluntários, como Ricardo Rato, geógrafo da Câmara de Monchique, que este ano só lá esteve dois ou três dias por semana, porque tem «muitos mais projetos na Câmara» a que dar resposta.

 

A Joaninha a trabalhar – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

A campanha de escavações deste Verão, no âmbito do Projeto de Investigação Plurianual em Arqueologia intitulado “Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce”, incidiu sobre três núcleos de trabalhos: um na plataforma onde se pensava haver vestígios de ocupação pré-histórica, outro junto às muralhas, entre as mais antigas e as mais recentes, e ainda outro na zona que já tinha sido identificada, em intervenções arqueológicas anteriores, como sendo a entrada norte do recinto fortificado.

Na plataforma com eventuais vestígios da pré-história estão a trabalhar, numa manhã de muito nevoeiro, Igor Dias e Joana Martins, ambos estudantes da UAlg.

Fábio Capela não esconde alguma frustração já que, salienta, depois de abrir uma zona para sondagem arqueológica, «não estamos a encontrar estruturas. O problema é que esta zona, nos anos 80, foi toda ripada para a agricultura. Vê-se ali as marcas das máquinas. Se havia aqui alguma coisa, pode ter sido destruída».

«Se continuarmos a não encontrar nenhuma estrutura, iremos suspender os trabalhos aqui e só voltaremos após nova prospeção geofísica, mas com magnetómetro, que eventualmente nos dê mais dados», explica o arqueólogo.

Naquela plataforma, ligeiramente abaixo do cerro do castelo, já foi encontrado algum espólio na Pré-História Recente, nomeadamente na Idade do Bronze (II milénio a.C.), ou seja, de há cerca de 4 mil anos. «Estas terras têm muito material, mas não aparecem estruturas, por isso, ou essas estruturas foram completamente arrasadas e não restaram vestígios delas, ou as terras são provenientes de outro local», acrescenta Fábio Capela.

Apesar de alguma desilusão pela falta de descobertas novas, Joana Martins, que participa nas escavações do Castelo de Alferce pelo terceiro ano consecutivo, não está nada triste. «Escavei islâmico em Cacela, também gosto. Mas Pré-História é um gostinho especial», confessa.

 

Sondagem em busca dos vestígios pré-históricos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Mais acima, na zona junto à muralha cujo setor é coordenado pela açoreana Daniela Cabral, estudante da UAlg, que estuda faunas com a professora Maria João Valente, os trabalhos começaram com uma tarefa difícil: retirar um cepo de sobreiro, cujas raizes penetraram nas paredes das estruturas islâmicas, algumas vezes destruindo-as.

«Foi preciso muito trabalho, mas conseguimos e já estamos a ter bons resultados», adianta Fábio Capela. É que, retiradas as raízes, foi possível definir a localização da parede de uma «provável área residencial associada ao segundo recinto de muralhas, o mais antigo».

Olhando para a muralha mais recente, que seria revestida a argamassa clara, o arqueólogo Fábio Capela adianta que esta teria «perto de 3 metros de altura, duvido que fosse mais». O troço que atualmente está à vista tem cerca de 1.95 m de altura, incluindo 60 centímetros que estavam enterrados. Cerca de um metro de muralha terá desaparecido, ao longo dos séculos, seja por causa de derrubes naturais, por exemplo causados por sismos, seja devido à utilização da pedra para outros fins.

Mas o que preocupa o arqueólogo municipal de Monchique é que «as argamassas desta muralha estão a desfazer-se», devido à ação do ar, da chuva, da humidade, do sol, do tempo. No entanto, as argamassas «vão ser sujeitas à intervenção de uma técnica de conservação e restauro, assim que a DGPC der autorização» para que os trabalhos avancem.

Ali bem perto, surgiu o «grande achado deste ano», nas palavras de Fábio Capela: um fragmento de um punhal, em bronze ou em cobre, que é «o primeiro achado de material bélico relacionado com a época islâmica». «Vamos proceder à análise deste fragmento em gabinete, para determinar de que metal se trata».

 

Fábio Capela a fotografar os trabalhos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Já no interior do recinto amuralhado mais elevado – e mais recente -, numa área onde os trabalhos são coordenados pelo zooarqueólogo Humberto Veríssimo, as atenções concentram-se na entrada norte do castelo – a tal zona onde a Joaninha estava a trabalhar -, mas também numa torre interior descoberta este ano, adossada à muralha original e, portanto, de construção posterior, «possivelmente de meados do século X ou inícios do século XI, de construção califal».

«Vamos ter de alargar a área da sondagem, para tentarmos saber mais», explica Fábio Capela, acrescentando que aqui também «apareceram peças interessantes, como um ponteirinho ou cinzel, talvez em bronze». Mas a maior parte do espólio é constituído por fragmentos de cerâmica, de vasilhas, mas sobretudo de telhas.

Humberto Veríssimo, como zooarqueólogo, interessa-se em especial pelos restos de fauna, pelos ossos de animais, que vão sendo identificados pelo trabalho paciente e minucioso dos estudantes de arqueologia. «Na entrada, nesta confusão, com restos de fauna muito fragmentados, surgiram dois dentes de cervídeo. Pelo tamanho, será, eventualmente, um veado», conta Humberto. «Até ao dia de hoje, não tinha encontrado aqui restos de cervídeos. O que mais tem aparecido são restos de cabra, ovelha, galinha, perdiz, alguns peixes de mar, provavelmente dourada, malacofauna, como amêijoa e ostra. Mas acredito que eles caçassem, por aqui, veados e outros cervídeos».

Porque nada, nenhuma informação, pode ser deitado fora, «também está a ser feita a recolha de sedimentos para estudos de arqueobotânica».

Tudo isso permitirá aos investigadores passarem a conhecer melhor como era o mundo e a paisagem que rodeava esses soldados islâmicos que ocuparam aquela fortificação no alto da serra, há mais de mil anos.

 

Humberto Veríssimo com a Joaninha – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Para conseguir mais e mais rigorosa informação, vão também ser feitas quatro datações por Carbono14 este ano, com a colaboração financeira da Associação Arqueológica do Algarve. Estas datações deveriam ser feitas no Reino Unido, mas até a este nível o Brexit está a criar complicações. «Se não for no Reino Unido, será nos Estados Unidos», acrescenta Fábio Capela.

Entretanto, no cerro do Castelo de Alferce, a campanha de escavações termina oficialmente hoje, 2 de Setembro, que será dia aberto à população e a todos quantos queiram visitar o sítio arqueológico.

Mas alguns dos arqueólogos, nomeadamente Fábio Capela e Humberto Veríssimo, ficam por ali ainda mais uma semana, para fazer o levantamento topográfico de todo o cerro, numa área de 1,5 hectares, e acompanhar a intervenção de conservação e restauro das argamassas, que deverá começar a 5 de Setembro, segunda-feira próxima.

Humberto explica que o que se vai fazer agora é um «levantamento topográfico à escala 1/200 no recinto todo e 1/100 no interior do castelo», acompanhado de um «registo tridimensional, em fotogrametria». Com esses dados, será então possível fazer uma «reconstituição digital do castelo, daquilo que já conhecemos atualmente».

Mas a curiosidade científica dos arqueólogos não pára. É que eles admitem, porque esses vestígios são visíveis, que haveria ainda uma terceira ordem de muralhas, exterior a todos as outras, mas pouco se sabe ainda sobre a sua extensão e a sua cronologia.

Por isso, «vamos ainda fazer uma sondagem junto a essa terceira muralha, com uma equipa reduzida», na zona onde termina o percurso a pé que partirá, 400 metros mais abaixo, do passadiço em madeira e ponte suspensa que hão-de ser construídos no Barranco do Demo, no âmbito de um projeto de valorização do património natural e cultural promovido pela Junta de Freguesia de Alferce.

«Posso andar a trabalhar aqui a minha vida toda e haverá sempre mais e mais para descobrir neste cerro do Castelo de Alferce», acredita o arquólogo municipal Fábio Capela.

 

A visita da vereadora da Cultura e do vice presidente da Câmara – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Valorização do cerro da Castelo de Alferce prestes a avançar

Quando o Sul Informação estava prestes a descer o cerro de Castelo de Alferce, chegaram ao local o vice presidente (Humberto Sério) e a vereadora da Cultura (Helena Martiniano) da Câmara de Monchique, para conhecer o andamento dos trabalhos arqueológicos e falar com os investigadores.

Depois de visitar as escavações e de ouvir as explicações, a vereadora Helena Martiniano, em declarações ao Sul Informação, sublinhou que este projeto é «uma aposta ganha, já que cada vez mais os investigadores estão a encontrar dados importantes».

A valorização deste sítio arqueológico, que passará pela colocação de painéis informativos até ao Verão do próximo ano, é um projeto já com alguns anos, que inclui a criação de um Centro Interpretativo na aldeia de Alferce, a escassas centenas de metros do cerro, a criação de um percurso pedestre, parte dele com um passadiço em madeira e uma ponte suspensa sobre o Barranco do Demo, tudo pago com financiamento dos programas Padre e Aldeias do Algarve (este último gerido pela Vicentina). Há agora também a ideia de criar um miradouro, numa das pontas do cerro, virado a Sul, de onde, em dias de visibilidade, se avista quase metade do Algarve, lá em baixo.

Este projeto de valorização, salientou Helena Martiniano, «vai ajudar a divulgar este sítio arqueológico. A comunidade científica conhece-o, mas o público ainda não conhece. E é isso que temos de alterar».

A vereadora acrescentou que «está quase a ser lançado o concurso para o passadiço e a ponte suspensa», que permitirão criar um percurso pedonal entre a aldeia de Alferce e o cerro do Castelo.

Projeto de investigação envolve várias entidades

O Projeto de Investigação Plurianual em Arqueologia intitulado “Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce”, promovido pela Câmara de Monchique, está em vigor desde 2020, em parceria com as Universidades do Algarve e de Évora e o Campo Arqueológico de Mértola, e o apoio da Junta de Freguesia de Alferce e da Associação Arqueológica do Algarve.

O Cerro do Castelo de Alferce é um povoado fortificado que ocupa uma elevação rochosa com 487 metros de altitude máxima, na serra de Monchique. O sítio arqueológico é composto por três recintos amuralhados não concêntricos, sendo que o vulgarmente chamado Castelo de Alferce corresponde ao recinto fortificado superior, onde estão a decorrer as investigações.

A fortificação era constituída por três ordens de muralhas: um fortim superior de tipo qasr (alcácer), uma cintura de muralhas a cerca de 36 metros do fortim e uma terceira cerca a rodear todo o cerro, com cerca de 9 hectares de área intramuros.

Além da ocupação islâmica-omíada (séculos IX-XI d.C.) o cerro contém vestígios arqueológicos enquadráveis na Pré-História Recente, nomeadamente na Idade do Bronze (II milénio a.C.).

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 



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