Descentralização administrativa e política regional

O sistema vertical de organização do poder procura adaptar-se às novas circunstâncias e salvar as aparências

Volto ao assunto da descentralização e da política regional. Numa década extraordinária, Portugal é, neste momento, um bom exemplo de uma dinâmica territorial complexa que envolve a descentralização de competências, a conversão das CCDR em instituto público, a execução de uma política regional muito exigente com o PRR 2026 e o PT 2030 e a digitalização das políticas do território. Vejamos alguns aspetos desta dinâmica em curso.

Em primeiro lugar, é sempre compensador fazer o debate doutrinário e político-ideológico, pelo menos em duas versões: o debate mais ideológico entre unitaristas e regionalistas, acerca das conceções do Estado e da administração pública, e o debate mais utilitarista e pragmático, acerca do experimentalismo de uma política de regionalização e dos seus vários momentos de descentralização administrativa.

Em segundo lugar, na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, é imperioso que as regiões possuam uma imagem positiva e assertiva de si próprias, que a sua energia positiva seja mobilizada na direção certa, que possam usufruir da sua liberdade plena para se pensarem a si próprias, correndo todos os riscos e consequências que essa assertividade pode acarretar e implicar.

Em terceiro lugar, é imperioso partir de uma ideia global e consistente de desenvolvimento regional, que não se reduza a um mero somatório de candidaturas sem qualquer ligação entre si no espaço e no tempo e, do mesmo modo, rever a dicotomia entre coesão e competitividade que tantos equívocos já ocasionou, pois, as regiões, na sua diversidade, estão obrigadas a converter essa diversidade em vantagem.

Em quarto lugar, os territórios regionais estão obrigados a subir na cadeia de valor da programação e do planeamento, isto é, podem ser excelentes centros de racionalidade e centralidade de políticas públicas e capazes de corrigir este velho e anacrónico país pendular; além disso, quanto mais se abre ao exterior mais urgente se torna a necessidade de criar regiões fortes capazes de utilizar toda a sua liberdade para que o seu capital humano e material seja adequadamente valorizado por intermédio de um modelo de governo mais autonómico, competitivo e relacional.

Em quinto lugar, a regionalização é, antes de mais, uma questão essencial de cultura política no seu sentido mais nobre; se o processo de regionalização for politicamente correto teremos, porventura, dado um contributo decisivo para uma mudança substantiva e substancial da cultura política em Portugal, sem ignorar que ele pode ser, igualmente, um processo impertinente e conflituoso, ao sabor das políticas conjunturais e das maiorias de ocasião.

Em sexto lugar, as CCDR são uma excelente base de partida para a política de regionalização, pois constituem uma “interface” de referência para todos os serviços regionais do Estado e dispõem de uma legitimidade funcional e operativa para a condução da política regional; as CCDR são uma infraestrutura administrativa útil para ensaiar o que eu designo como a regionalização coordenativa; a partir daqui, a regionalização é um processo eminentemente político, pois podem ensaiar-se diversas vias, mais curtas ou mais longas, para converter as CCDR em órgãos de governo e administração.

Em sétimo lugar, a nova administração regional do território terá de provar a sua competência no quadro da política de coesão territorial da União Europeia e de uma governação multiníveis que engloba quatro políticas territoriais: a política regional europeia, a política regional nacional, a política regional propriamente dita e a política local intermunicipal; em todos estes níveis há instrumentos e medidas de políticas, estruturas de governo e administração respetivas e, bem assim, os seus distintos e complementares modos de financiamento.

Finalmente, a fachada ibérica e a cooperação transfronteiriça são um quadro de referência fundamental para a política regional onde já se incluem a formação de euro-regiões e euro-cidades, a utilização da figura dos Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial e as plataformas tecnológicas colaborativas em múltiplos formatos.

Notas Finais

Aqui chegados, algumas notas finais.

A lei-quadro nº 50/2018 de 16 de agosto relativa à transferência de competências para as autarquias e entidades intermunicipais, a RCM nº123/2022 de 14 de dezembro relativa à transferência, partilha e articulação das atribuições dos serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado nas CCDR, e a aprovação em março do decreto-lei que aprova a conversão das CCDR em Instituto Público, marcam, não apenas uma alteração substancial da estrutura de poderes locais e regionais como apontam para uma nova filosofia de regionalização e política regional no horizonte 2030.

O processo jurídico-administrativo de transferência e partilha de atribuições e competências decorrerá, em princípio, até março de 2024, resta saber como, no plano político, se irão estabilizar as novas relações de poder entre o novo Instituto Público e as constelações de poder à sua volta: as câmaras, as comunidades intermunicipais, os serviços periféricos do estado, o sistema político-partidário, o lobbying institucionalizado e os grupos mais ou menos organizados da sociedade política local e regional; lembro que estamos na fase inicial de execução dos principais programas operacionais do PRR e do PT 2030, não seria avisado criar mais uma fonte de instabilidade neste momento.

No plano jurídico-político, as CCDR serão um instituto público de regime especial, sem a direção política hierárquica habitual, mas com a superintendência e a tutela administrativa do Estado central; no plano institucional, as CCDR, no âmbito do Conselho de Concertação Territorial, aprovam um acordo de parceria e um contrato-programa com a administração central e executam esse acordo ouvindo o Conselho de Coordenação Intersectorial no plano regional.

O sistema vertical de organização do poder procura adaptar-se às novas circunstâncias e salvar as aparências. Esperemos para ver.

 

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