A emoção de levar a Mãe Soberana ao ombro relatada por duas gerações

«Pegar no andor da Mãe Soberana envolve muito sentimento», assume Horácio Ferreira, que carregou a Mãe Soberana ao ombro entre 1976 e 2016

Tiago e Horácio Ferreira. Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

Horácio Ferreira tinha 19 anos quando pegou no andor da Nossa Senhora da Piedade pela primeira vez. Em 1976, não esperava vir a carregar a Mãe Soberana até 2016, mas a verdade é que sentiu que essa continuava a ser a sua missão e que continuava apto para a cumprir.

Foram 40 anos sobre os quais hoje fala com muito orgulho e emoção – principalmente por fazer parte da família que há mais anos pega, em sequência, no andor, sendo esta já a sexta geração.

“Este começo foi feito por um primo meu que era cabo. Julgo que a nossa família é a que tem mais anos em sequência hereditária a pegar no andor, mas isto nunca foi uma questão de obrigatoriedade. Tanto pode passar de pais para filhos, como não, mas é bonito que passe de pais para filhos, porque, pegar no andor da Mãe Soberana envolve muito sentimento e, se este sentimento não for posto como primeira base da segunda parte de se pegar no andor, não funciona», começou por contar Horácio Ferreira ao Sul Informação, durante uma conversa três dias antes da Festa Grande, que se realizou no domingo, 1 de Maio.

«A primeira parte é a nossa disponibilidade de amor à Mãe Soberana. Eu julgo que nenhum homem pegará no andor da Mãe Soberana se não tiver amor de mãe», continua.

Como louletano, Horácio Ferreira sempre viveu esta festa e, com 10 anos, já acompanhava os homens do andor. Nessa altura, queria um dia ocupar esse lugar e poder também ele carregar o sentimento e a emoção de um povo e de uma festa que traz tantos «filhos adotivos a Loulé».

«Sempre levei a Nossa Senhora da Piedade por carinho e amor à Mãe Soberana e isso, para mim, sempre foi ponto assente e de honra. Eu estou ao serviço da Mãe Soberana e, quando vou subindo, levo a Mãe às minhas costas».

Ser homem do andor é uma tarefa dura, levar o andor não é para todos, mas Horácio acredita que, nos momentos mais difíceis, é a Mãe Soberana que lhes dá força para continuar, subir a ladeira e chegar ao Santuário.

«Não tenho dúvida de que há uma ajuda superior. Todos os homens que pegam no andor da Mãe Soberana têm a sua parte religiosa. E, a partir de certa altura da subida, sou eu a dizê-lo, não há força nenhuma, a não ser a da Mãe Soberana, que diga: eu vou lá chegar e vocês vão todos lá chegar», realça.

Esta não é, contudo, uma ideia partilhada apenas por Horácio. Tiago Ferreira, também homem do andor, não podia estar mais de acordo com o pai.

«Acredito seguramente que há uma força superior, mais que não seja a força do povo. Mas tenho a certeza de que é a fé que nos faz mover». Para Tiago, que acompanha o pai durante as festas da Mãe Soberana desde os 7 anos, pegar no andor foi sempre uma vontade, que só aos 19 anos se concretizou.

«O meu pai também já levava o andor desde os 19 anos e eu acompanhei-o sempre. Quando chegou a minha vez, tinha a mesma idade dele. Faço agora vinte anos de Homem do Andor, que, na verdade, são dezoito a transportar a Mãe Soberana porque só houve dezoito festas», contou Tiago ao Sul Informação.

 

Tiago e Horácio Ferreira a preparar-se para carregar o andor –  Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

Na ocasião da entrevista, dois dias antes da Festa Grande, já se notava os nervos, a emoção e o orgulho de, uma vez mais, se preparar para a jornada que leva milhares de pessoas a Loulé.

«A festa tem mais que se lhe diga. Há a procissão pelas ruas da cidade, depois há a subida – e é nessa subida que deveremos ter algum respeito, mas receio não, porque eu costumo dizer que quem está com a Mãe Soberana não tem medo. É um respeito pela missão que estamos a cumprir», revela Tiago.

Esta é também uma ideia que Horácio Ferreira, agora responsável por transportar a tocha, passa aos homens antes da sua última saída do Largo de São Francisco, de onde o andor parte por volta das 18h00, em direção ao Santuário da Nossa Senhora da Piedade, no alto do monte, ao qual irá chegar cerca de uma hora depois.

«Agora puxo pelos outros que levam a Mãe em cima, sempre acreditando que a Mãe está na minha vida. A Nossa Senhora da Piedade faz, todos os dias, comigo, um milagre: no meu trabalho, na minha vida social, familiar, todos os dias eu falo com a Mãe Soberana e ela está na minha vida», diz Horácio, com emoção na voz.

 

Os homens do andor – Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

O percurso desde o Largo de São Francisco até ao Santuário, que se faz duas semanas depois da Páscoa, é longo e duro, mas os homens do andor contam sempre com o apoio das pessoas que os ajudam nesta tarefa de carregar a padroeira de Loulé, gritando «Vivas!» de incitamento.

«A arrancada da Igreja do Largo de São Francisco é uma coisa que não dá para explicar. Quando os homens saem, sabem que é uma missão difícil, mas são homens que se ultrapassam a eles próprios. O que eu costumo dizer aos homens do andor antes da saída é: “oito homens, oito irmãos, estão entregues a vocês próprios, a partir daqui mais ninguém mexe no andor e não tenham a menor dúvida de que a Mãe Soberana vos vai ajudar”», conta Horácio, que frisa que ter o povo ao lado do andor dá sempre «muita força».

 

Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

Hoje, aos 65 anos, e depois de dois anos de interregno («Quando o homem do andor não sai com a Nossa Senhora à rua, não desfruta») devido à pandemia, Horácio sentiu o regresso da festa com a mesma emoção, mas, dias antes, confessou-nos que esta não se podia realizar num dia mais marcante.

«Desta vez, a festa junta as famílias num dia [1 de Maio] em que se assinala também o Dia de São José Operário e o Dia da Mãe».

Desde 2016, e apesar de já não levar o andor ao ombro, Horácio tem acompanhado sempre os homens, caminhando ao seu lado.

«Todos os anos eu digo que é o último, mas, quando se aproxima a data da festa, acho que me transformo. As dores que eu tenho nas costas passam, as dores que eu tenho nos pés passam, a idade que eu tenho passa. Acho que passa tudo e estou rejuvenescido».

Por ter acompanhado tantas fases da festa, Horácio confessa ter receio de que a mística se perca, mas tranquiliza-o saber que o seu sangue «continua a correr debaixo do andor».

«É importante para mim ver que o Tiago nutre os mesmos sentimentos que eu. Toda essa educação lhe foi dada, ele tem-na com ele. Tenho um filho que começou ao meu lado e por isso tem todos os valores com ele».

 

Tiago e Horácio Ferreira já no santuário – Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

Ao Sul Informação, Horácio explica que, para ser homem do andor, é preciso querer muito. «Quem quer ser homem do andor, anda de roda da Mãe. O que eu tenho de fazer é lutar para ser a escolha dos homens do andor. O facto de andar de roda mostra uma humildade no querer e isto é importante para os homens do andor, que depois fazem a sua escolha».

Depois, cabe a cada um saber qual o momento de parar. «Eu podia ter levado mais anos. Mas achei que aquela seria a meta e, a partir daí, retirei-me. Ninguém diz a um homem que já não pode levar o andor. Cada um terá que ter a sua responsabilidade de dar o lugar a outro. Também é preciso saber dizer não e o homem do andor tem de ter essa humildade», conta.

Para Tiago Ferreira, que leva já vinte anos a carregar a Mãe Soberana, parece difícil desempenhar essa missão durante tanto tempo como o seu pai.

«Não digo que é impossível, porque não sei o que me espera, mas 40 anos é uma vida. Eu ainda nem cheguei lá e é dureza. Acredito que o meu pai, psicologicamente, ainda hoje está preparado para levar o andor, mas, fisicamente, também temos de respeitar o nosso corpo e de ser honestos para com os outros homens».

Questionado sobre a preparação necessária, Tiago confessa que fazem umas caminhadas antes do grande dia, para que consigam estar fisicamente preparados, mas é apenas isso.

De acordo com Horácio, «tem de haver uma condição física adaptada ao esforço- Antigamente, era mais fácil porque os homens que levavam o andor eram homens de trabalho na agricultura, na construção civil, no caminho de ferro. Havia uma relação direta com o trabalho que seria, se calhar, mais difícil para um empregado de escritório».

«Uma das coisas que o meu avô me ensinou foi a levantar sempre o forcado às vivas da Mãe Soberana e dos homens do andor, mas nunca levantar muito os olhos, porque ,com a força do cansaço, podíamos ganhar um certo medo. Por isso é que, quando eles saem do Largo de São Francisco, eu digo sempre: “medo nunca, respeito sempre”».

E foi com esse respeito que, no passado domingo, 1 de Maio, estes oito homens voltaram a percorrer o caminho íngreme, devolvendo a Mãe Soberana à sua casa. Durante o percurso, e à chegada, foram milhares as pessoas, de todas as idades, que os acompanharam, sentindo com eles a mesma emoção.

 

Fotos: Mariana Carriço| Sul Informação

 

 

 

 



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