A construção da ponte D. Maria em Santa Clara-a-Velha e os acessos ao Algarve há 200 anos

Ponte faz 200 anos por estes dias

Estado atual da ponte D. Maria – Foto: Aurélio Nuno Cabrita | Sul Informação

Nas imediações de Santa Clara-a-Velha, concelho de Odemira, a caminho da barragem homónima, existe uma ponte em ruínas designada como D. Maria. Na aldeia, a cronologia de edificação diverge e se, para muitos, o nome é uma homenagem à rainha que promoveu a sua construção, outros atribuem-na ao período romano.

Se é certo que a justificação para a designação não é fácil, estamos certos que a ponte não foi edificada nos reinados das rainhas homónimas e muito menos pelos romanos.

O pronunciamento militar de 24 de Agosto de 1820, que já aqui evocámos, e todo o período imediato que se lhe seguiu, nomeadamente as Cortes Constituintes e Cortes Gerais, geraram um clima de regozijo na maioria dos portugueses, já que se acreditava que a estagnação que até então se vivia seria a breve trecho algo do passado. Um movimento coletivo apoiava a regeneração do país.

Ora, os assuntos abordados durante esta fase da vida parlamentar portuguesa abrangeram, pode dizer-se, toda a panorâmica da vida nacional. Foram inúmeras as felicitações e representações das autarquias e também de cidadãos anónimos enviadas para as Cortes.

É neste sentido que se enquadra um pedido da Câmara de Ourique para «a construcção de huma ponte sobre o Rio de Odemira, na Freguezia de Santa Clara», então termo daquele concelho.

Embora não tenhamos acedido ao requerimento propriamente dito, ele foi vertido na resposta dada pela Regência do Reino ao juiz de fora de Ourique, que, por inerência, ocupava a presidência da edilidade, a 25 de Junho de 1821.

Assim, ficamos a saber que se achava «inútil a avultada despeza que se fez em abrir a estrada que communica a Provincia de Alemtéjo, com o Reino do Algarve, pela Serra do Caldeirão na Freguezia de S. Martinho, por que no Inverno o caudalozo Rio de Odemira interrompe a passagem por dias successivos».

Nos anos de 1794 e 1795, a referida via fora alvo de beneficiações, na área de S. Martinho das Amoreiras, então similarmente termo de Ourique, todavia reconhecia-se que, sem uma ponte em Santa Clara, o investimento tinha sido em vão, uma vez que a impetuosidade do Mira não permitia o seu atravessamento.

Logo, o seu uso era condicionado e, como tal, não fomentava o desenvolvimento da agricultura e do comércio do Alentejo e do Algarve, como se pretendia.

 

Estado atual da ponte D. Maria – Foto: Aurélio Nuno Cabrita | Sul Informação

 

Assim, «tendo a Regencia muito em vista promover os interesses dos Povos, de que resulta o bem geral da Nação», mandou proceder «á Planta, e orçamento da obra», ou como hoje diríamos, à elaboração do projeto, ao major engenheiro António Eliseu Paula de Bulhões, encarregado de obras análogas no Alentejo.
Nesta sequência, oficiava a Regência, em Junho de 1821, ao dito juiz de fora, para que a autarquia ouriquense procedesse à arrematação dos trabalhos, sendo que «o preço da obra, ser[i]a pontualmente satisfeito, á proporção do adiantamento della».

Mas não ficou por aí, participando ao mesmo magistrado, vereadores e demais oficiais daquela vila, que, analisado o assunto, considerava também «para a communicação dessa Província com aquelle Reino [do Algarve], pela Serra do Caldeirão, não he bastante a dita ponte de Santa Clara, mas se preciza outra sobre a Ribeira de S. Marcos, no Termo de Silves, assim como também a abertura da estrada, entre estas duas pontes, e o concerto da mesma estrada em outros sítios».

Logo determinou que António de Bulhões procedesse posteriormente à execução do projeto da ponte em S. Marcos, examinasse o estado da estrada entre esta aldeia e Santa Clara, bem como que tomasse as observações necessárias «para que ella se rompa pelo sitio mais apropriado a evitar o difficil do passo, e o excesso de despezas».

Por fim, devia ainda examinar a estrada, «desde o sitio da Ponte de Santa Clara até á Freguezia de S. Martinho».

Afinal, pretendia o governo «fazer cessar estes obstáculos, a fim de que os Povos gozem de todas as commodidades, que a Agricultura, e Commercio, lhes proporcionão, e de que pela falta destas Obras estão privados», pelo que a obra deveria ser concretizada com a brevidade possível.

Digamos que o Algarve iria dispor de uma «autoestrada» em direção a «Portugal».

Note-se que este percurso era utilizado pelos algarvios que, da zona de Albufeira, se deslocavam à capital do reino, ou pelos oriundos de Portimão e Lagos, que se dirigiam ao interior do Alentejo, como nos dá conta João Batista de Castro, no seu «Roteiro Terrestre de Portugal», publicado em 1748. A distância de 36 léguas entre Albufeira e Lisboa tinha como condicionante a passagem de seis ribeiras.

 

Imagem mais antiga da ponte, na Wikipedia

 

A 1 de Dezembro de 1821 era, na presença da planta e orçamento, arrematada em Ourique a construção da ponte de Santa Clara, «pelo menor lanço».

Este cifrou-se em 7 000 000 de réis metálicos e foi protagonizado por Francisco Lopes do Rosário, de Faro. Arrematante que solicitou a entrega de algum capital, de forma que, a 19 de Janeiro de 1822, era determinado pela Regência ceder à autarquia a verba para que aquele mestre fosse «recebendo pequenas porções de dinheiro de que necessitava para o adiantamento da obra».

Ficava estipulado que o numerário deveria ser entregue em três pagamentos iguais, um no princípio dos trabalhos, outro a meio e o último na sua conclusão, desde que respeitadas todas as condições contratuais.

Ficou ainda a Câmara obrigada a dar à Secretaria de Estado «em todos os quinze dias conta do adiantamento da obra e se ela vai correspondendo às quantias recebidas», não fosse acontecer algum desvio, ou melhor, corrupção. A ponte, com quatro arcos e cunhais em grés de Silves, terá ficado concluída nesse ano.

 

Estado atual da ponte D. Maria – Foto: Aurélio Nuno Cabrita | Sul Informação

 

Quanto à ligação em São Marcos da Serra, sobre a ribeira de Odelouca, não foi concretizada e a tal não terá sido alheia a dissolução das Cortes e a exoneração do governo, na sequência do golpe de Estado da «Vilafrancada», em Maio de 1823.

A contra revolução triunfava e com ela dissipava-se o espírito regenerador. Se a ponte em São Marcos não foi construída, também a estrada não sofreu alterações, a avaliar pelos testemunhos de Baptista Lopes em 1841, ou de Charles Bonnet, nove anos depois.

Este último refere que «o que existe são apenas atalhos por vezes demasiado escabrosos e apenas transitáveis a cavalo», pelo que «não se devia dar o pomposo nome de “estrada real” visto ser um simples caminho».

Somente no fim de 1880 aquele curso de água foi atravessado pela ponte ferroviária, enquanto a infraestrutura rodoviária apenas se materializou em 1965, mais de 140 anos depois.

Ora, como vimos, a construção da ponte de Santa Clara encontra-se profundamente documentada, conhece-se o projetista e o empreiteiro e está datada.

É certo que, quanto à designação, não encontramos resposta cabal. Mas, provavelmente por a estrada ter sido arranjada em 1794 e 1795, ficou designada como D. Maria, em homenagem à rainha D. Maria I, em cujo reinado os trabalhos foram promovidos, nome que se estenderia à ponte mais de 20 anos depois e único testemunho que perduraria o antropónimo.

Porém, o indomável Mira e as suas enérgicas cheias causaram problemas estruturais muito precocemente e levaram à destruição parcial da ponte, em meados do século XX. A 29 de Maio de 1955, a ponte Eng.º Jorge Moreira, construída a oeste da aldeia, era inaugurada e com ela a primitiva infraestrutura foi abandonada.

As ruínas da ponte de D. Maria, que por estes dias comemora 200 anos, lembram-nos não só uma obra assaz importante (ainda que incompleta, por não se ter concretizado a execução da estrada e da ponte em São Marcos), como a união e tenacidade da maioria dos portugueses de regenerar Portugal, naquele triénio liberal de 1820-1823.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época.

 



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