Bowing, um espetáculo para que S. Teotónio acolha migrantes asiáticos «de coração aberto»

Entrada para o espetáculo, que se realiza hoje, sábado e domingo, a partir das 19h00, com partida do Quintalão, é livre

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

São quase 19h00, a noite já caiu e começam a chegar pessoas ao Quintalão, na vila de S. Teotónio. Chega o Milan, a Laxmi, o Rajendra, o Maitri, mas também a Madalena, o André, o Pedro e a Apekshya. Vão falando, ora em inglês, ora em português, sempre entre sorrisos.

Durante cerca de duas horas, o tempo que demora o espetáculo “Bowing”, mostrarão, com dança, música e palavras, que a convivência sã entre portugueses e migrantes asiáticos, nesta espécie de Oriente Alentejano, pode acontecer. Basta ser trabalhada.

Quando Laxmi chegou a Odemira, há dois anos e meio, os primeiros dias não foram fáceis. Do Nepal, partiu com o pai, a mãe e a irmã. Sentiu o que é ser pobre – e não o esquece.

No Quintalão, numa noite fria de quarta-feira, lá está ela, alheia a tudo isso, numa grande roda, à volta de um chafariz, que junta cerca de 40 pessoas. Sorri, dança e vai arriscando o português na conversa com os colegas.

É dela, da Laxmi, de 16 anos, a mão que dá imagem ao cartaz do “Bowing”, o novo espetáculo do projeto Lavrar o Mira e a Lagoa que estreia esta sexta-feira, dia 12, às 19h00, em S. Teotónio, e que também terá sessões no sábado e domingo, à mesma hora, sempre com partida do Quintalão.

Esta é uma iniciativa que junta música asiática, portuguesa, dança e excertos de textos, lidos em português, mas também em língua hindu. O objetivo é muito claro: aproximar as populações asiática e portuguesa, esbatendo um muro que ainda existe.

 

 

Pelas ruas da vila, que é casa para tantos migrantes (no concelho de Odemira, em 2020, havia 9600 imigrantes legais), Laxmi anda com uma luz que vai iluminando as várias performances. Sente-se o seu à-vontade.

«Eu gosto mesmo muito de todos os que estão a participar neste projeto. Sinto-me completa a trabalhar com eles», conta ao Sul Informação.

Foi há um ano que todo este trabalho começou.

Madalena Victorino, acompanhada da sua equipa, andou pelas escolas de Odemira a dar a conhecer o seu “Bowing”. Conseguiu recrutar 40 estudantes, entre crianças e adolescentes, de vários países, como o Nepal, a Índia ou o Bangladesh. A grande parte, filhos de trabalhadores nas estufas que proliferam pelo Sudoeste Alentejano.

«Agora, mais do que amigos, somos todos uma família. No futuro, já me vejo a ficar a viver em Portugal: quero ser médica e ajudar quem mais precisa, os pobres, porque sinto a dor deles», exclama Laxmi que não esquece as contrariedades de quando chegou a Portugal.

 

 

Na escola, o primeiro impacto foi duro. Houve bullying, incompreensão e desconfiança.

«Trataram-me mal. Não falava português e senti essa discriminação para com as pessoas vindas de Ásia. Hoje, são todos meus amigos!», recorda, sorridente.

As histórias destes jovens migrantes que participam no “Bowing” têm todas um elo de ligação: são relatos de crianças ou adolescentes que acompanharam os pais na aventura de emigrar para Portugal em busca de uma vida melhor.

Maitri Patel veio da Índia e, tal como Laxmi, está no Alentejo há dois anos e meio. Antes, viveu quatro na Alemanha. «Aqui é bem melhor! Fiz mais amigos, as pessoas são mais simpáticas e o tempo é melhor», diz ao Sul Informação.

Em “Bowing”, Maitri dança, fala e até será uma princesa. Quando soube da existência deste espetáculo, nem pensou duas vezes.

 

 

«A razão foi simples: a mensagem que se quer passar. Isso fez-me logo querer participar porque estão a tentar juntar culturas e pessoas diferentes. Se acontecesse outra vez, garanto que voltaria a aceitar», diz, convicta.

Ao comando de tudo, está Madalena Victorino, coreógrafa de renome e uma das mentoras deste Lavrar o Mira e a Lagoa. Ao longo do ensaio, que entretanto já saiu do Quintalão para as ruas de S. Teotónio, é ela quem vai dando dicas, corrigindo pequenas coisas, num vai-e-vem constante.

Quando fala, tanto em português como em inglês, nunca dispensa um gesto de carinho. Dá a mão às crianças; ouve os mais velhos.

«O que eu desejo, com todo este projeto, é integrar na comunidade a população asiática que mora neste território. Que se sintam incluídos, felizes e que os portugueses os recebam e percebam melhor», conta ao Sul Informação. 

Para ela, esta é uma questão global. «O mundo está a mover-se. Quem chega, nem sempre é bem recebido e, quem está, nem sempre gosta de abrir as suas portas aos desconhecidos. Queremos pôr este assunto na agenda artística que também é uma agenda política», acrescenta.

São cerca de 70 as pessoas, entre adultos, jovens e crianças, que compõem o “Bowing”, um espetáculo itinerante, uma «travessia pelas ruas desta vila que respira um Oriente Alentejano», como gosta de dizer Madalena.

 

 

Essa «transformação» parece-lhe ser «definitiva», mas ainda há muito a fazer pela integração.

«Haverá muitas opiniões sobre o que estamos a fazer, mas eu acredito que a arte pode mudar muita coisa. Há aqui problemas graves, como a habitação, as condições de trabalho. Todos me dizem que se sentem incompreendidos», lamenta a diretora artística.

Isabela Silveira, portuguesa, mora em S. Teotónio, bem no centro, e vai tomando o pulso, todos os dias, à vida na vila. No “Bowing”, é uma das ajudantes na produção, um trabalho que «tem sido fantástico».

«Há uma barreira entre as nossas culturas. Os migrantes são muitos e torna-se difícil. A língua é um entrave, uma vez que a maioria não fala inglês», conta.

Com este espetáculo, Isabela relata, sorridente, como já foi possível «conhecer melhor» os migrantes.

«Não conseguia pronunciar os nomes e até já sei algumas expressões. Acho que é possível mais convivência, um trabalho que pode começar talvez pelas nossas crianças. Por aí, é mais fácil. O “Bowing” é uma grande ajuda porque os migrantes sentem que fazem parte de algo», conta.

Rajendra Shiwakoti conhece bem a realidade do que é emigrar para Odemira, em busca de uma vida melhor. Tem 32 anos e faz parte da “banda” que acompanha todo o “Bowing”.

Vive no Alentejo só com a mulher – no Nepal, está a filha que não vê desde que cá chegou.

«Tal como os portugueses foram para outros países, eu vim para cá já há quase dois anos», diz. Hoje, sente-se «mais integrado na sociedade, mas tudo foi um processo».

«Quando chegamos, não sabemos como agir. Há barreiras. Hoje, já me sinto capaz de me misturar com as pessoas de cá», acrescenta, sorridente.

A sua história, que vai contando sem rodeios, é uma réstia de esperança para essa convivência sã.

Rajendra trabalhou na agricultura intensiva, até que foi diagnosticado com Covid-19, vírus que o obrigou a ser hospitalizado. «Quando voltei, depois de ter estado muito mal, não podia trabalhar mais nos campos agrícolas. Era impossível para mim», conta.

 

 

Foi então que soube de uma oportunidade na TAIPA – Organização Cooperativa para o Desenvolvimento Integrado que ajuda os migrantes que chegam a Odemira.

No Nepal, já tinha trabalhado numa Organização Não-Governamental e hoje é a TAIPA a sua casa profissional.

«Como falo hindi, nepalês, inglês e um pouco de português, sou mediador. Faço traduções, por exemplo», relata. A experiência tem sido «mesmo muito boa».

«Eu tenho aprendido muito com os portugueses, mas há pessoas que não nos desejam aqui, claro. Não posso dizer que todos nos aceitam, mas também não posso dizer que nenhum nos aceita», acrescenta.

André Duarte, mais conhecido como Júnior, é o responsável pela música no “Bowing”, uma parte crucial em todo o espetáculo. É ele o “maestro” de Rajendra.

Apesar de estar habituado a trabalhar com sons de todo o Mundo – foi um dos integrantes da banda Terrakota -, Junior não esconde que este tem sido um «desafio singular e complexo».

«Houve, da minha parte, uma premissa de tentar não expor a música tradicional como ela é, mas dar até uma nova roupagem mais contemporânea. O resultado final tem música do Nepal, do Punjab, mas também de Portugal», explica.

 

 

Durante o trabalho de preparação, foi conhecendo a realidade em que vivem muitos dos migrantes asiáticos em Odemira, percebendo os seus sonhos e a «riqueza incrível que têm».

«Há uma vontade de saírem da esfera trabalho-casa-trabalho que não sai cá para fora. As pessoas não se expõem e, para os locais, eles são a parte viva da má gestão que houve na agricultura intensiva. Só isso», diz.

Para Júnior, não se trata de «hostilidade», mas de «desconfiança». «O fluxo é tão grande, tão massivo, há tanta a gente a chegar que os de cá não estão preparados. Ninguém estaria».

O jovem Milan Magar, de 15 anos, sentiu esse grande impacto quando chegou.

«Eu não falava muito com as pessoas. Não tinha confiança e, com este espetáculo estou a conseguir expressar os meus sentimentos. É o que eu sinto», diz.

Já na Praça da República, Rajendra Shiwakoti sobe à varanda de uma casa para declamar umas palavras em hindu. Cá em baixo, escuta-se atentamente. Quem passa, de carro ou a pé, também fica curioso e alerta perante algo novo.

Como diz Rajendra, este espetáculo vai «ajudar as pessoas a abrir as suas mentes e o seu coração».

«Somos milhares, cada vez mais. Temos a nossa cultura, sim, mas não estamos em Portugal para causar a guerra. Também já pertencemos aqui», sentencia.

 

Fotos: Pedro Lemos | Sul Informação

 

 

 



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