Portugal 2030: Défices estruturais, grandes riscos e mudanças paradigmáticas

Temos de trazer o futuro para o presente, fazer o seu caminho todos os dias, sob pena de não termos futuro

Lidamos mal com o futuro e as suas projeções ou antecipações. Ora, nesta década, convergem os défices estruturais, os grandes riscos e as mudanças paradigmáticas. Não é pouca coisa.

Isto quer dizer que temos de trazer o futuro para o presente, fazer o seu caminho todos os dias, sob pena de não termos futuro. Comecemos com os défices estruturais da sociedade portuguesa.

Os défices estruturais da sociedade portuguesa

Para lá do enunciado de vários planos de transição – o PRR e o PT 2030 – a política da nossa administração não nos assegura que serão resolvidos ou mitigados os défices estruturais da sociedade portuguesa que deixámos acumular nos últimos 20 anos, a saber:

– A quase estagnação do binómio produtividade-competitividade (que empobrece uma boa parte dos que trabalham),

– O círculo vicioso de baixas qualificações, baixos rendimentos, elevada desigualdade social e pobreza (que polariza cada vez mais a sociedade portuguesa),

– Os custos de contexto e as distorções da despesa fiscal e dos benefícios fiscais; a descarbonização e a digitalização requerem uma alteração da estrutura destes benefícios;

– A irrelevância do mercado de capitais para efeitos de capitalização, redimensionamento e inovação de PME; este facto atira as PME para as mãos do sistema bancário, a que se juntam, agora, as moratórias por efeito da pandemia;

– A reduzida integração e especialização das nossas cadeias de valor e respetiva internacionalização (as exportações para lá dos 43% do PIB de hoje);

– A ausência de um plano de reforma consistente da divida pública e privada (que nos pode estrangular até ao final da década, com mais TAP e NB à mistura);

– Os excessos regulamentares e regulatórios em redor da administração da justiça, da fiscalidade, do licenciamento, dos pareceres ambientais, que burocratizam a administração pública e reduzem o incentivo ao IDE;

– A profunda transformação do mercado socio-laboral exige uma revolução na formação profissional dos ativos, no trabalho das instituições de ensino superior, na coesão da economia social de mercado e na política social do Estado providência do século XXI;

– Os efeitos assimétricos das grandes transições – descarbonização, digitalização, automação – desta década exigem mais equidade e efetividade das políticas de coesão territorial para impedir novos fluxos migratórios para o litoral e o exterior.

Ou seja, trinta e cinco anos depois da entrada na CEE o país está claramente melhor, mas uma parte importante dos portugueses continuará a lutar para não ficar mais empobrecida.

Os grandes riscos da sociedade portuguesa

Em segundo lugar, é preciso prevenir e antecipar os grandes riscos, pois eles podem causar-nos danos profundos e impedir a resolução dos défices estruturais. No dia 25 de abril de 2024 a democracia portuguesa comemorará meio século de existência.

Nessa data é muito provável que o enquadramento global e europeu e algumas das suas linhas vermelhas estejam ao rubro, por exemplo: os efeitos da crise climática, as ameaças virais e pandémicas, o risco permanente de uma crise nuclear, o perigo terrorista sempre iminente, o risco informático e a guerra cibernética, a ameaça populista e a regressão iliberal, as tensões geopolíticas com a China e a Rússia, a saúde da economia global e do multilateralismo, a falta de confiança no projeto europeu. Para lá destas linhas vermelhas, existem alguns riscos mais próximos de nós e que mais diretamente nos podem afetar.

1 – Alterações climáticas, impactos devastadores

Os episódios são cada vez mais frequentes, mais distribuídos e mais violentos e os últimos relatórios dos peritos apresentam-nos datas e prazos cada vez mais próximos de nós.

2 – Mediterrâneo, estados falhados e crise de refugiados

Passaram dez anos sobre a primavera árabe e os acontecimentos falam por si, estamos perante estados falhados, cada vez mais radicalizados e com fluxos de refugiados cada vez mais intensos e próximos de nós.

3 – Espanha, uma grave crise política interna

Uma grave crise política interna, por razões que se prendem com o regionalismo independentista e sua associação à crise da monarquia, pode eclodir a qualquer momento. Um vizinho tão poderoso e tão instável não é uma boa notícia, sobretudo, se acrescentarmos os problemas relativos às centrais nucleares próximo das fronteiras e a gestão da água dos rios internacionais da península.

4 – Diáspora portuguesa, uma crise no horizonte

Não chegam boas notícias da diáspora portuguesa, basta pensar na Venezuela, África do Sul, Angola, Moçambique ou Brasil, para citar apenas os mais críticos. Se à crise político-económica e social juntarmos os episódios climáticos e pandémicos estão reunidas as condições para uma crise grave no horizonte próximo.

5 – União Europeia, uma grave crise de confiança

A União Europeia demonstrou ser, mais uma vez, uma organização política fundamental na prevenção e combate aos grandes riscos. Por isso mesmo, qualquer fratura ou disfuncionamento na sua atividade pode ser uma péssima notícia para todos os europeus.
Para lá dos bens públicos globais, a União Europeia tem de estar muito atenta às desigualdades sociais e à polarização social, são elas que conduzem ao radicalismo, populismo e nacionalismo europeus e a uma grave crise de confiança.

Portugal 2030, as mudanças paradigmáticas

Em terceiro lugar, e em simultâneo com os défices e os riscos mencionados, teremos as mudanças paradigmáticas que irão alterar a geoeconomia global (a hegemonia da zona do Indo-Pacífico), a posição relativa dos países, dos atores económicos, das suas regiões e o bem-estar das suas populações.

1 – O pacto ecológico europeu e a nova matriz energética

Do acordo de Paris (2015) ao pacto ecológico europeu e à lei europeia do clima (2021), trata-se de alcançar a neutralidade carbónica em 2050 e uma redução de 55% das emissões até 2030.
A descarbonização e a nova matriz energética vão alterar de forma muito assimétrica as várias economias nacionais e regionais, razão pela qual foi criado um fundo de transição justa para o efeito.
Os novos arranjos produtivos serão mais complexos.

2 – A grande transformação digital e a reorganização do mercado de trabalho

A transformação tecnológica e digital em curso tem um impacto muito desigual nas economias nacionais e regionais e nos seus respetivos mercados de trabalho. Por outro lado, a redução da pegada ecológica e energética obriga a rever muitas cadeias de valor e algumas delas serão mesmo desglobalizadas e relocalizadas. A relação entre transformação digital e mercado de trabalho é, por isso, muito variável nas suas consequências nacionais e regionais.

3- O pacto migratório, o pilar social europeu e a reforma do Estado-administração

As alterações climáticas e energéticas e a transformação digital têm consequências devastadoras sobre os países e as economias mais frágeis, cujos efeitos, de resto, são bem visíveis hoje em dia.
As migrações erráticas, os fluxos de refugiados, o número crescente de estados falhados, os campos de acolhimento como elemento de geopolítica regional, todos estes fatores põem à prova a resiliência política da União Europeia e a sua capacidade para fortalecer o pilar social europeu e aprovar um pacto migratório mais ambicioso ainda. Uma consequência imediata é o impacto destas reformas sobre a robustez do Estado-providência e a reforma mais geral do Estado-administração.

Notas Finais

Confesso que não consigo vislumbrar o combate contra os défices estruturais, os riscos globais e as mudanças paradigmáticas sem a provisão de mais bens comuns europeus e, portanto, sem o aprofundamento da união económica e monetária (UEM), da união fiscal e orçamental (UFO) e da união política europeia (UPE), cujo grau de exigência política federal faz apelo e justifica, no plano interno, uma frente política com o mesmo nível de exigência e ambição, a pôr em prática tão rapidamente quanto possível.

Assim, no horizonte temporal do programa de recuperação e resiliência (PRR, 2026) e do PT 2030 torna-se necessário e urgente o seguinte imperativo categórico: um compromisso histórico interpartidário no horizonte 2024, uma revisão dos tratados europeus no quadro da UEM II e da UPE, um programa de reformas do Estado para duas legislaturas e, por último, mas em simultâneo, um programa de reformas estruturais para o desenvolvimento económico e social, a realizar até 2030.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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