Lagos reabre hoje o seu (novo) Museu

Reabre o Museu de Lagos, com a sua exposição de longa duração «Depois de 1460 & Coleções Especiais»

É um museu com 90 anos e, no entanto, é um museu completamente novo. Pode parecer contraditório, mas é o que acontece com o Museu de Lagos Dr. José Formosinho, que hoje, 27 de Outubro, feriado municipal, reabre as suas portas, quatro anos e um mês depois de as ter encerrado para remodelação e obras.

Hugo Pereira, presidente da Câmara Municipal de Lagos, que ontem acompanhou uma visita de jornalistas, enquanto se dava os retoques finais, garantiu que o museu «será a maior coqueluche cidade e um dos melhores equipamentos de museologia do Algarve».

As alterações no Museu de Lagos Dr. José Formosinho começam logo na entrada: o Portal do Compromisso, que, quase desde a fundação do museu, estava no exterior do edifício, marcando a entrada, agora está mais protegido, recolhido no interior, no átrio, constituindo, no fundo, a primeira peça. É por esse portal do século XV, que pertenceu ao Compromisso Marítimo, que se entra para a visita às 10 salas do Museu.

Elena Morán, arqueóloga e uma das responsáveis, com Rui Parreira, museólogo da Direção Regional de Cultura do Algarve, pelo programa do novo Museu de Lagos, explica que, além de proteger a magnífica peça de pedra, a deslocação do Portal do Compromisso para o interior vai permitir que, na rua, volte a ficar marcado o local de uma das principais portas de Lagos, a Porta da Vila do recinto muralhado medieval.

A visita ao Museu de Lagos começa ainda no átrio, com uma homenagem ao seu fundador, o Dr. José Formosinho que, nos anos 30, era licenciado em direito e notário em Lagos, mas também arqueólogo amador (como eram todos, nessa época).

 

Rui Parreira, Nuno Gusmão, Hugo Pereira e Elena Morán – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Depois, a primeira sala é dedicada ao século XVI, «o período glorioso de Lagos», como explicou Elena Morán, quando o porto e a baía vibravam com os navios que chegavam e partiam em busca das riquezas longínquas, em continentes quase desconhecidos dos europeus.

«Era uma cidade em crescimento, com muitas famílias abastadas», uma riqueza que se pode ver nas cantarias expostas, nos paramentos, nas peças religiosas em marfim, vindas do Ceilão, ou mesmo nas pinturas, duas de Francisco de Campos, pintor flamengo ativo em Portugal no século XVI, outra procedente da Igreja de Saõ Sebastião, atribuída a Gaspar de Azevedo, pintor dos finais do século XVI nascido em Bensafrim, e outra, de autor desconhecido, comprada recentemente pela Câmara de Lagos.

Estas pinturas, de temas religiosos, surgem agora como se fossem novas, com as cores vibrantes. No caso das obras de Francisco de Campos, isso resulta do aturado trabalho de tratamento e de restauro feito no Laboratório José de Figueiredo, que também tratou os delicados tecidos dos paramentos. As restantes (assim como toda a coleção de pintura) estiveram ao cuidado do ateliê José Mendes.

Elena Morán aproveita para fazer um aparte: «neste Museu, colaboraram muitíssimas pessoas, cada uma delas muito importante nas suas áreas. Basta olhar para a ficha técnica [patente no átrio, junto à loja] para se perceber isso».

A sala seguinte refere-se aos séculos XVII e XVIII. «O florescimento de Lagos acaba com o terramoto de 1755 e o tsunami que se lhe seguiu», acrescentou a arqueóloga. Esses pormenores são contados por uma animação que mostra a destruição de Lagos, bem como por uma amostra geológica retirada este ano no paul da ribeira de Bensafrim, que mostra as camadas de terra e detritos deixadas pela onda gigante do maremoto.

Na parede ao lado, é o renascer do poder local que é mostrado, através das varas da vereação e da arca com as chaves da cidade…era Lagos a tentar reerguer-se. literalmente, dos escombros.

 

Uma das salas do Museu de Lagos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Na sala das devoções, há belas imagens de santos e santas, algumas delas raras e muito curiosas, como um Menino Jesus na cruz… Aqui se mostra como viviam a religião as confrarias, as paróquias, mas também cada pessoa.

Continuando a visita, chega-se à sala em que se evocam episódios militares, como o ataque a Lagos protagonizado pelo corsário inglês Francis Drake (1587), a batalha e o afundamento do navio francês L’Ócean, na chamada Batalha de Lagos (1759), vindo o navio a afundar-se quase frente às praias da Salema e da Boca do Rio, hoje no concelho de Vila do Bispo.

Além das peças (como o impressionante canhão de bronze, derretido pela violência do fogo que tomou o Ócean), a história é contada por uma animação multimédia muito fácil e interessante de seguir, concebida, como todas as outras nas mais variadas salas do Museu, por Pedro Pereira (da byAR Augment Your Reality).

A antiga sacristia – onde, em 1931, nasceu este mesmo museu – também foi restaurada. E aí Elena Morán chamou a atenção para um cálice em ouro, do século XVIII, de origem mexicana. «Como chegou aqui a Lagos? Não sabemos», admitiu.

Curiosidade é ainda o facto de o móvel da sacristia ser novo, mas construído segundo o que era habitual. Agora, as suas gavetas, preparadas para evitar a humidade, guardam preciosos paramentos, que, segundo Nuno Gusmão, do P-06 Atelier, responsável pelo projeto de museografia do Museu de Lagos, «servem de reserva visitável». Abrindo uma gaveta, para mostrar os paramentos lá cuidadosamente guardados, exemplificou o que queria dizer.

Na igreja de Santo António – que acaba por ser a 11ª sala deste museu -, com o seu magnífico interior coberto de talha dourada, restaurada em 2016, também numa iniciativa também da Câmara de Lagos, há agora um novo elemento, ou antes, um elemento que agora pode ser visto com outros olhos. É que o frontal do altar, que parece um tecido de damasco de cor avermelhada, é, na realidade, uma tela pintada com esse efeito. E, mais curioso ainda, essa tela podia ser voltada, mostrando, na sua outra face, uma pintura imitando damasco de cor verde.

«Era para poder ser mudado, conforme o uso litúrgico», explicou Rui Parreira.

«Por cima dessa tela, havia sete panos de altar. Nós retirámos tudo, quando foi para o restauro, e preferimos deixar assim. Este é o olhar do arqueólogo e não do conservador», acrescentou Elena Morán.

 

Foto de grupo na Igreja de Santo António, que integra o Museu – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

E porque «o museu se adapta ao espaço existente e se faz a partir da coleção existente, tendo-se construído uma narrativa a partir daí», não foi possível criar um percurso circular. Por isso, da capela passa-se de novo ao átrio da receção e daí volta a entrar-se nas salas, mas agora nas que ficaram por ver.

E a primeira é logo de deslumbramento. O «gabinete de curiosidades», muito à moda do século XIX, em que o anterior museu se tinha transformado (apesar de ter sido criado no século XX) está aqui bem evocado. Uma espécie de grande estante, com prateleiras repletas com mais de 200 objetos diferentes, onde apetece perder o olhar por largos minutos, devolve-nos, num olhar contemporâneo, as velhas vitrines de outrora.

Nuno Gusmão, autor do projeto de museografia, descreve, com um grande sorriso, o seu trabalho, chamando até a atenção para alguns pormenores mais técnicos, como os minúsculos projetores que tudo iluminam, mas deixam ver as transparências, o que está por trás e acima.

Nessa estante das maravilhas, há, como explicou Elena Morán, a «artificialia» e a «naturalia». No que é artificial, criado pelo homem, destaque para a coleção de arte africana e outros objetos desse continente, onde chamam a atenção os chapéus, verdadeiros símbolos do poder no Congo.

Continuando a olhar, na parte da «naturalia», há desde aves, crocodilos e até um burro bebé empalhados, ossos de baleia (costelas e vértebras), ovos de aves, peles e penas, bem como uma curiosa coleção de frascos cheios de coisas estranhas ou simplesmente pouco conhecidas, como o cão dos três olhos, o gato das duas cabeças, a sardinha gigante, o esturjão. E há a cabra das oito pernas…

Também estes objetos foram alvo de um aturado trabalho de conservação e de restauro, feito por especialistas do Museu de História Natural de Lisboa. No caso das aberrações do mundo animal, estavam (mal) conservadas dentro de frascos com formol, uma substância tóxica, e, com os anos, tinham mirrado. «Tiveram de ser retirados do formol e reidratados, estando agora dentro de álcool, como deve ser», explicou Elena Morán.

 

Parte da renovada apresentação da coleção de pintura naturalista – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Daqui pode passar-se às salas da pintura. E há aí obras de Falcão Trigoso (que se casou com uma senhora de Lagos e veio viver para a cidade, tendo sido diretor da então Escola Industrial) e do seu amigo Samora Barros, grandes pintores naturalistas. Mas há também doações recentes, como a de uma pintura de Margarida Tengarrinha e de outra, da primeira metade do século passado, do seu pai, José Tengarrinha, sobre Sagres.

Rui Parreira chama a atenção para o trabalho feito por Anísio Franco, do Museu Nacional de Arte Antiga: «com ele, a coleção de pintura do Museu de Lagos ganhou uma outra perspetiva. Ele fez o expurgo da coleção e expõe aqui peças que nunca tinham sido mostradas, de uma forma inteiramente nova». E assim, nas paredes, em obras de muitos autores, surgem imagens de Lagos, da Costa d’Oiro (assim batizada por Falcão Trigoso), do Algarve rural, das suas figuras e até uma curiosa secção dedicada apenas a mulheres pintoras lacobrigenses ou ligadas à cidade.

Surge a seguir a sala dedicada às chamadas «artes industriais», ou seja, à cestaria, à olaria, à latoaria, entre outras. Mas não se trata de uma coleção que resulte de recolha etnográfica, porque, salienta Rui Parreira, «estas peças não foram usadas, foram concebidas só para ser mostradas e para ir para as grandes cidades para serem vendidas». A partir da investigação da antropóloga Luísa Ricardo, nos arquivos da antiga Escola Industrial Victorino Damásio, de Lagos, sabe-se agora que muitas destas peças resultaram da aplicação de conceitos modernos de ensino, de design e de novas funcionalidades às técnicas artesanais então em uso. No fundo, «era uma espécie de TASA antes da época», brinca Elena Morán.

 

A árvore-instalação da sala das artes industriais – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Mas, além desses aspetos curiosos, do cheiro e das peças em si, o que chama a atenção nesta sala é a forma como tudo é apresentado, numa grande instalação central, verdadeira obra de arte…da museografia. Só vendo!

E depois, descansem os mais nervosos que pensavam que a aldeia de Nossa Senhora do Forte tinha desaparecido. Esta maquete gigante de uma «utopia» da aldeia algarvia perfeita, lá está, em lugar de destaque e com novidades. «O criador da aldeia, Pedro Reis, ao longo dos anos, foi criando mais coisas, como uns óculos para ver a aldeia como se fosse de noite ou com nevoeiro. E até criou uma rota turística de visita da aldeia, assim como compôs uma música».

Pois, tudo isso está agora presente na maquete – com o sistema multimédia criado por Pedro Pereira pode ver-se a aldeia com nuvens, com gente a passar nas ruas, navios a chegar ao cais, um jogo de futebol a acontecer, ou mesmo ouvir-se o tal hino, que, como revela Elena Morán, «gravámos na semana passada, com o Grupo Coral de Lagos e a Sociedade Filarmónica».

A fechar a visita, Rui Parreira sublinha o «brutal trabalho de conservação e restauro» feito para este novo/velho Museu de Lagos. «Toda a coleção do Museu foi tratada no sentido da conservação preventiva e todas as peças que estão expostas foram sujeitas a restauro». Um trabalho titânico, feito com a colaboração dos melhores especialistas nacionais, que resulta do investimento da Câmara de Lagos, financiado por fundos europeus.

 

O «gabinete de curiosidades» – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 


O museu do Dr. Formosinho
O museu foi criado em 1931, por insistência do Dr. José Formosinho, que era licenciado em direito e notário em Lagos. Começou por ocupar a sacristia da capela da antiga irmandade do Regimento de Infantaria de Lagos, sendo inicialmente dedicado à arte sacra. Chamava-se, por isso, Museu Regional de Santo António.
Mas, como recordou Rui Parreira, «foi sendo enriquecido quer pelo espólio que resultava do trabalho do Dr. Formosinho como arqueólogo, quer por doações que iam sendo feitas». E o museu foi-se expandindo para o casario circundante, que foi sendo comprado pela Câmara de Lagos e adaptado às suas novas funções.
Ao longo dos anos, salientou o arqueólogo e museólogo, as pessoas de Lagos e de outras partes do Algarve foram oferecendo ao museu as mais variadas peças, algumas delas bem curiosas e hoje bem estranhas, como «as aves empalhadas, com os seus ninhos e ovos, a cabra de oito pernas, o cão dos três olhos, o gato das duas cabeças, a sardinha gigante». O antigo museu era, assim, constituído por coleções muito diversas, às vezes apresentadas como se de um «gabinete de curiosidades» se tratasse.
Hoje, décadas depois de essas peças terem sido expostas pela primeira vez, elas podem ser vistas no novo museu. Lá está a «cabra de oito pernas, o cão dos três olhos, o gato das duas cabeças, a sardinha gigante». Só que a forma como esse espólio é mostrado, mantendo o espírito da época original, assume uma total e completa contemporaneidade.
«Esta coleção mostra como era importante a ligação do museu à população de Lagos». Por isso, muito do que ali se mostrava – e continua a mostrar – eram «as peças que as pessoas achavam curiosas e doavam porque consideravam que deviam também estar no museu. É uma coleção muito variada e construída muito com base no carinho das pessoas pelo museu da sua terra», acrescenta Rui Parreira.

«Queremos retomar essa filosofia, esse espírito e, aliás, já estamos a fazê-lo, incorporando peças novas, doadas recentemente», concluiu o museólogo.

 

Núcleo de Arqueologia será aqui – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Obras do Núcleo Arqueológico começam até ao final do ano

O novo Museu de Lagos é composto por 10 salas (mais a Igreja de Santo António), mas em breve terá mais um núcleo, do outro lado da rua, no edifício onde funcionou a PSP, e que irá acolher a vasta e rica coleção arqueológica, desde a pré-história à morte do Infante D. Henrique, em 1460. No antigo quintal, será criada uma sala para exposições temporárias.

O presidente da Câmara anunciou que essa obra do Núcleo de Arqueologia deverá começar até ao final do ano. É que a empreitada já foi adjudicada, portanto, agora é iniciar os trabalhos.

 

Investimento de 7,3 milhões de euros financiado pelo CRESC Algarve 2020
Toda a operação de requalificação e remodelação do Museu de Lagos foi feita no âmbito do Programa Operacional CRESC Algarve 2020, representando um investimento total de 7,3 milhões de euros, financiados em 2,6 milhões de euros pelo FEDER.
Estes valores consideram as empreitadas, os projetos museográficos e de comunicação, a produção dos conteúdos expositivos e o restauro de peças, abarcando as duas componentes de intervenção, isto é, a remodelação do núcleo primitivo do Museu (que agora reabre com a designação “Museu de Lagos Dr. José Formosinho”) e a sua ampliação, através da criação do Núcleo de Arqueologia, cuja obra já foi adjudicada.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 



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