Como seriam umas Férias no Algarve…há 120 milhões de anos?

O paleontólogo Luís Azevedo Rodrigues faz uma divertida incursão por umas improváveis e bem diferentes férias no Algarve…no Cretácico inferior

Ir. Simplesmente ir, após ano e meio de incertezas, angústias e extinções.

Férias e Algarve são sinónimos, para muitos portugueses e estrangeiros. Mas o que marca o imaginário de uma pessoa que vai para o Algarve?

Calor, mar calmo e quente, palmeiras em empreendimentos mais ou menos sofisticados, a toalha num colchão natural de areia, próximo de uma arriba rochosa. Ao fim do dia, petiscar umas conquilhas ou amêijoas, isto enquanto antecipamos um jantar, sem pressas, onde degustaremos uma dourada ou um robalo.

As indispensáveis sardinhas são, claro, obrigatórias, ainda que nos façam ir para a cama com um cheiro muito, digamos, característico. Antes do regresso, vamos comprar uns doces de amêndoa e uns amigos disseram-nos que ouviram falar de uns “chocolates” de alfarroba, aquelas árvores vimos quando visitámos o interior do Algarve.

Fartos já de lugares-comuns algarvios 2021?

 

O DESAFIO FÉRIAS: O ALGARVE DE HÁ 120 MILHÕES DE ANOS

A proposta são umas férias no Cretácico inferior, há aproximadamente 120 milhões de anos, uma fase na qual os dinossauros deixaram as suas pegadas na Praia da Salema ou se depositaram as camadas de sedimentos multicoloridos da Praia da Luz ou mesmo o aparecimento das primeiras flores.

 

O NOSSO DESTINO

A Península Ibérica era uma verdadeira jangada de pedra, um bloco isolado, uma ilha, tal como escreveu Saramago.

A abertura do Atlântico continua a separar a Ibéria do continente americano, sendo que, nesta altura, esta “jangada de pedra” localizava-se mais a sul, a uma paleolatitude de 30º norte, o que, se fosse nos dias de hoje, corresponderia a Agadir, em Marrocos, ao Cairo ou mesmo a Nova Orleães, nos EUA.

As viagens para o Brasil e para a os EUA eram também muito baratas, caso existissem aviões (e já agora, pessoas!), uma vez que já se havia iniciado a fragmentação do enorme supercontinente Pangeia.

A Península Ibérica estava assim entre dois oceanos: a este, o Neotetétis, e a oeste, o jovem e ainda estreito Oceano Atlântico. A sul, a falha de Gibraltar separa-nos de África, e a norte, outra fronteira natural no Golfo de Biscaia mantinha a Europa à distância.

 

CLIMA

Embora, no início do Cretácico, o clima do Algarve fosse semelhante ao de hoje em dia, as maiores diferenças climáticas eram globais e residiam no facto de as temperaturas nos polos serem muito superiores às atuais, originando que, há 120 milhões de anos (Ma), os polos não tivessem gelo.

O facto de os polos serem muito mais quentes do que hoje é justificado pelo efeito estufa de então, fruto da grande atividade vulcânica que os movimentos de separação continental originaram. Mas não só. Uma corrente tropical, vinda de este, entrava no ainda pequeno Atlântico, promovendo uma libertação de calor para norte e aquecendo o polo norte. Fruto do derretimento dessas grandes massas de gelo dos polos, o nível médio do mar era muito superior ao atual – esta subida das águas do mar faz lembrar alguma coisa, não?

O clima na Península Ibérica era tropical, quente e húmido, suficientemente exótico para umas férias no Algarve.

 

AS PRAIAS

O relevo geral da Península Ibérica era suave, sem grandes montanhas ou elevações a destacar nesta fase da história da Terra. Quanto à linha de costa, no fundo o que interessa saber a qualquer banhista – onde está a praia? -, foi variando ao longo do Cretácico inferior.

Genericamente, podemos dizer que a linha de costa, ou seja, até onde ia o mar, foi recuando à medida que o tempo ia avançando: de uma costa que estava quase em Silves e entre Faro e Loulé, há 142 milhões de anos, até praias bem a norte de Silves e Loulé, há 113 Ma.

De destacar que ir à praia em Lagos implicava uma viagem, mais ou menos demorada, para o interior.

Este avanço geral do mar, com variações, pois não nos devemos esquecer que estamos a falar de milhões de anos, deveu-se sobretudo a diferentes condições climatéricas, ausência do gelo nos polos, bem como variações na profundidade do mar durante este período.

 

Há aproximadamente 125 Ma é importante referir que referir que quem se aventurasse a mergulhar ao largo de Faro poderia observar um tipo de bivalves já extintos, os rudistas, que contribuíam para bioedificações, um pouco à semelhança do que acontece com as construções feitas pelos corais.

Estes bivalves extintos existiram do Jurássico superior até ao final do Cretácico, as suas valvas (conchas) eram espessas e muito diferentes entre si (uma cónica e uma plana), sendo pela base da primeira que se fixavam ao fundo do mar. Eram mares de pequena profundidade, quentes, embora com alguma agitação. Talvez mergulhar para observar rudistas fique apenas como proposta turística mais radical…

 

PAISAGEM E PLANTAS

Teríamos o mesmo prazer paisagístico no Algarve do tempo dos dinossauros do que temos hoje em dia?

As plantas com flor (angiospérmicas), dominantes nas paisagens atuais – desde as ervas e todas as flores silvestres, árvores de fruto, entre muitas outras -, iniciavam o seu domínio na Terra.

Há 120 Ma, as plantas que poderíamos observar na paisagem podem resumir-se a bosques de coníferas (como a Watsoniocladus identificada por Paulo Fernandes, na Praia dos Arrifes), cicadófitas, os fetos e às gingko.

No Cretácico inferior, época desta experiência turística, já todas as atuais famílias de coníferas estavam representadas, incluindo o grupo dos pinheiros (Pinaceae) e o grupo das araucárias (Araucariaceae), dando assim uma imagem mais familiar à paisagem do passado.

Segundo Paulo Fernandes, da Universidade do Algarve, e com base na análise dos níveis rochosos da Praia dos Arrifes, havia um predomínio dos fetos sobre as outras floras, denotando, assim, um clima húmido e quente, podendo alguns desses fetos atingir tamanho de árvores, os chamados fetos arbóreos.

Mas as paisagens do sul de Portugal estão atualmente pinceladas por várias árvores, como o sobreiro (Quercus suber), embora o mais antigo registo do grupo a que pertence o sobreiro date de há apenas 30 Ma (Oligocénico). Ou seja, a paisagem algarvia era muito diferente da dos dias de hoje. O simples comprar artesanato de cortiça seria…impossível, já que ainda não teríamos o sobreiro – se existisse vinho, como é que seriam tapadas as garrafas?

Outra planta que constitui imagem de marca algarvia, quer pela sua marca na paisagem, quer pelos seus frutos, é a amendoeira (Prunus dulcis), mas teríamos ainda que aguardar 70 milhões de anos, já que o seu parente mais antigo surgiu na América do Norte, há apenas 50 Ma, muito depois destas paleoférias do leitor.

Também os campos de golfe estavam muito longe de ser um dos atrativos do Algarve, já que as gramíneas (onde se incluem os diferentes tipos de relvas, mas também, por exemplo, o milho ou o arroz) ainda não haviam surgido. Os fósseis mais antigos destas plantas datam já depois do desaparecimento dos dinossauros (há 66 Ma), ainda que tenham sido identificados restos de gramíneas em “cócós” fossilizados (coprólitos) de dinossauros.

Estudos recentes remetem o aparecimento deste grupo de plantas para próximo dos 120 Ma, mas ainda assim, os campos de golfe, o arroz de lingueirão ou o típico xarém, feito de milho, todos envolvendo gramíneas… e terão que esperar mais uns milhões de anos.

Em contrapartida, não haveria crises de alergia devido aos pólenes…as flores já haviam aparecido, mas a sua importância no ambiente ainda não era idêntica à atual.

 

COMER FORA

Se, em 2021, um dos atrativos algarvios são as sardinhas, há 120 milhões de anos teríamos que necessariamente abdicar desta iguaria, uma vez que as sardinhas (Sardina pilchardus) apenas apareceriam há aproximadamente 3 milhões de anos, com fósseis provenientes de Itália. Já os mais antigos parentes da sardinha apareceram logo após a extinção dos dinossauros, há 66 Ma.

Se quiséssemos, por exemplo, deliciarmo-nos com uma dourada ou mesmo lulinhas fritas, a questão já mudaria. Enquanto para a dourada (Sparus aurata) o registo mais antigo tem cerca de 40 milhões de anos (Eocénico), as nossas férias teriam que durar mais 80 milhões de anos para apreciarmos este peixe.

 

No caso das lulinhas (Loligo vulgaris), e apesar dos cefalópodes já povoarem os mares há mais de 500 milhões de anos, ainda não existiam como grupo no Cretácico inferior.

Se os paleo-turistas se quiserem deliciar com algo parecido, sugerimos tentarem algumas belemnites, um cefalópode extinto, muito semelhantes às atuais lulas, mas, ao contrário destas, tinham uma concha interna. Ainda como imagem de marca (e potencial gastronómico) dos mares cretácicos temos outro molusco cefalópode marinho – as amonites. Quem sabe?

As amonites foram um grupo de animais muito diversificado, moluscos com conchas de espiral plana e tamanhos que iam dos poucos centímetros a mais de dois metros de diâmetro (valor estimado para Parapuzosia seppenradensis), igualmente desaparecidos na mega-extinção do final do Cretácico. Mais um prato a experimentar?

 

Outras das especialidades algarvias são as conquilhas ou as amêijoas-boa (Ruditapes decussatus). Estas iguarias, ambas bivalves, ainda não existiriam, mas, como alternativa gastronómica experimental, sugerimos os rudistas que, como vimos, existiriam ao largo de Faro e Tavira, há 125 Ma.

Apesar das suas conchas muito espessas, fica sempre a possibilidade de uma descoberta agradável para o paladar, boa para contar à família e amigos já que há 66 milhões de anos ninguém prova rudistas – a agência de viagens temporal devolve o dinheiro em caso contrário.

Em jeito de conclusão, este exercício – fazer turismo ao passado da história natural do Algarve – teve como principal motivação apresentar muito, repito, muito brevemente, algumas das informações que atualmente sabemos sobre este momento da Terra e do Algarve em particular. Esta introdução não teve o objetivo de ser um levantamento exaustivo das informações geológicas e paleontológicas que atualmente sabemos.

Deliberadamente, optei por omitir informações sobre outros aspetos que me são profissionalmente mais próximos, como é o caso dos dinossauros.

Para uma próxima oportunidade, talvez se possa completar o quadro mais completo do património geológico e paleontológico algarvio, em jeito de…turismo ao passado.

 

Autor: Luís Azevedo Rodrigues (Paleontólogo, PhD) é Diretor Executivo do Centro Ciência Viva de Lagos

 

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Agradecimentos

Paulo Fernandes (Universidade do Algarve) – pelas sugestões da paleoflora e paleoambiente do Algarve, do mapa de paleocosta.
Pedro Terrinha (IPMA) – pelos comentários e disponibilidade.
Pedro Proença Cunha (Universidade de Coimbra) – no envio de bibliografia.

Referências

Correia, F., 1989. Estudo Bistratigráfico e microfácies do Cretácico carbonatado da Bacia Sedimentar Meridional Portuguesa (Algarve). Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Ciências de Lisboa, 400 p.

Penn, S. J., Sweetman, S. C., Martill, D. M., & Coram, R. A. (2020). The Wessex Formation (Wealden Group, Lower Cretaceous) of Swanage Bay, southern England. Proceedings of the Geologists’ Association.

Rodrigues, L.A. and Agostinho, M. (2016) Lagos – Urban Geology and Paleontology Guide. Lagos Ciência Viva Science Centre Editions, 124pp. ISBN 978-989-99519-2-1.

Rodrigues, L.A. and Agostinho, M. (2016)a Tavira – Urban Geology and Paleontology Guide. Lagos Ciência Viva Science Centre Editions, 120pp. ISBN 978-989-99519-0-7

Taylor, T.N., Taylor, E.L., M.C., Krings. (2009). Paleobotany, Second Edition The Biology and Evolution of Fossil Plants.

Willis, K.J, & McElwain, J.C. (2002). The evolution of plants. Oxford: Oxford University Press.

 

 
 

 
 



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