A tragédia do esquecimento

A maternidade tem muito de mágico, mas também pode ser um padecimento que nem sempre é revelado

A dor de perder um filho querido deve ser um sofrimento inigualável. Se essa perda for provocada indiretamente pelos progenitores, acredito que o tormento seja ainda maior. Em qualquer dos casos, é uma mágoa para toda a vida.

Na passada quinta-feira, 6 de maio, uma menina de dois anos morreu após ter ficado aproximadamente sete horas esquecida pela mãe dentro do carro, na Avenida Miguel Bombarda, em Lisboa. Os pais só se terão apercebido do sucedido depois de um funcionário da creche ligar a perguntar porque é que a criança não tinha sido deixada na escola.

Os pais ainda levaram a sua filha ao hospital, os médicos tentaram reanimá-la durante trinta minutos, mas de nada serviu. Desidratação e falência multiorgânica, o resultado da autópsia.

Como não vejo notícias, tive conhecimento desta tragédia através do Facebook de uma amiga.

Sou mãe de duas meninas e, durante seis anos, sobrevivi em privação de sono e depois, quando já podia dormir, o corpo esqueceu-se de como fazê-lo. A quetiapina tornou-se, durante muito tempo, a minha melhor amiga ao deitar e o comprimido branco ainda me faz companhia ao pequeno-almoço.

A mais velha, quase a fazer oito anos, nasceu com baixo peso. Era necessário acordá-la de duas em duas horas para mamar. Quando já não era preciso, a minha filha decidiu continuar a acordar sozinha. Mesmo sem dormir de forma conveniente, decidi engravidar de novo. Mais três anos em que a almofada só recebeu a minha cabeça intermitentemente. Se me arrependo? Claro que não.

Durante esses seis anos, esqueci-me de muitas coisas. Abria o frigorífico e não me recordava porquê; descia as escadas sem perceber a razão, perdi chaves, a melodia dos pássaros irritava-me, o riso dos outros incomodava-me. As compras, perdidas na bagageira do carro, estragaram-se demasiadas vezes — aliás, ainda hoje, isso me acontece. Acredito que perdi algumas faculdades tanto como perdi noites de sono.

A maternidade tem muito de mágico, mas também pode ser um padecimento que nem sempre é revelado. Os bebés não dormem como os pais gostariam; como as mães e os pais precisam. Mas é a sua natureza.

Recentemente li uma notícia no Público sobre a tendência dos pais utilizarem melatonina em crianças e não estranhei. Não recorri à melatonina, mas levei as minhas filhas a consultas de aconselhamento do sono. A mais velha até fez acupunctura.

A privação de sono poderá ser parte da maternidade. Nada a fazer quanto a isso (felizmente, nem todos os bebés são iguais e nem imagina como me contorcia por dentro, quando alguém partilhava a sua felicidade, para mim, pote de ouro no final do arco-íris: a minha filha dorme a noite toda desde os três meses!).

Se juntarmos a este facto, a ausência de uma eventual rede de apoio (o meu caso — sentia-me a maioria das vezes, estrangeira no meu próprio país, sem ninguém a quem pedir ajuda), a realidade atual desde o início da pandemia, com o cansaço profissional acumulado do teletrabalho e a dinâmica familiar, que só quem está entre as mesmas paredes conhece, estão reunidos os elementos para uma tragédia destas ocorrer. Não fui eu, mas podia ter sido. Não foi a primeira vez que a dor do esquecimento foi notícia, nem será, infelizmente, a última.

Não quero imaginar o sentimento de culpa, a angústia, os «porquê?», o julgamento dos outros que esta mãe terá de enfrentar, a aflição com que terá de sobreviver e que a acompanhará, provavelmente, até ao fim dos seus dias.

Lamento abismalmente a morte daquela menina. Desejo àquela mãe e pai força para criarem os seus dois filhos. Nem imagino onde a irão buscar.

 

 
 



Comentários

pub