Afinal, o que é a realidade hoje?

A realidade é virtual, a virtualidade é real

O que é a realidade hoje, em plena era digital? Num mundo cada vez mais virtual, quando olhamos, o que é que vemos? Apetece dizer, quanto mais olhamos, menos vemos.

O “Pare, escute e olhe” de ontem, já não chega nos dias de hoje. Paramos, mas não reparamos, escutamos, mas não ouvimos, olhamos, mas não vemos.

Estamos em apuros. Raramente a realidade se deixa apanhar e, agora, muito menos, porque se tornou muito mais escorregadia e furtiva, mais falsa e mais pós-verdade! Façamos, então, uma brevíssima incursão aos mistérios da realidade dos dias de hoje.

Em primeiro lugar, os nossos olhos são apenas olhos, uma pele fina para as primeiras visualizações, apenas isso. As sociedades abertas e cosmopolitas em que vivemos são sociedades de risco iminente e elevado que precisam de assegurar um mínimo de proteção adequada, pelo menos a ilusão de uma proteção, digamos, uma porta entreaberta.

Não admira, pois, que elas sejam atravessadas por cortinas sucessivas, que as tornam pouco transparentes, mas que também as fazem transbordar, qual jogo de luzes e sombras cujo frenesim alucinante quase nos cega.

Em segundo lugar, vivemos cada vez mais em ambientes simulados. Somos, sobretudo, atores e personagens constantemente comprometidos numa vertigem representativa, utilizando inúmeras máscaras que usamos conforme as circunstâncias e as conveniências.

Nessa cultura da representação e simulação, a cenografia e a coreografia são atividades de composição extenuante que nos deixam próximos da exaustão. Imagine-se, agora, o princípio da realidade a contas com a “simulação dos objetos” quando estes, por via da “internet das coisas”, começarem a “ditar, também, a sua realidade”.

Em terceiro lugar, somos, cada vez mais, um campo vertiginoso e desestruturado à beira do caos e é cada vez mais estreita a margem ou o limbo em que vivemos, enquanto experimentamos a sensação do risco iminente.

Quando todos comunicarem entre si, pessoas, objetos e inteligência artificial, através de uma internet totalmente acessível e distribuída, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado, se quisermos, uma espécie de grande indigestão coletiva.

Em quarto lugar, a velocidade é a nossa imagem de marca e cada velocidade revela-nos e devolve-nos uma grelha de leitura da realidade. O passado e o futuro são, digamos, aspirados para o momento presente e nesse movimento perdemos não apenas o lastro histórico, mas, também, a promessa do futuro que nos garantia, ao menos, a esperança de uma expetativa.

Num tempo quase irreal em que vivemos, o presente é, digamos, uma mera circunstância, um epifenómeno na grande seta do tempo e destinado a ser devorado por um vulgar ato de consumo.

Em quinto lugar, a realidade é um assunto interpretativo, isso quer dizer, muito modestamente, que as sociedades estão obrigadas a aprender constantemente, num exercício feito de aproximações sucessivas.

O nosso arsenal teórico e, em especial, o campo das ciências sociais e humanas, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, com origem no “iluminismo moderno e na cultura analógica” estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital.

Em sexto lugar, na era dos dados e das multidões, onde reina o algoritmo-mestre e a metalinguagem normalizadora, estamos obrigados a suspeitar para conhecer. Digamos que estamos a atualizar para o século XXI o princípio cartesiano da dúvida metódica ou sistemática. A evidência dos dados é uma “arma de destruição matemática” (Cathy O’Neal, 2016) e, por essa razão, não devemos confundir a correlação estatística com a explicação racional.

Entre a descontextualização da evidência estatística e a plurissignificação da realidade, é aqui que nos encontramos hoje, se quisermos, entre a hermenêutica e a terapêutica transpostas para a era da cultura digital.

Em sétimo lugar, há uma parte da realidade que nos escapa em grande medida, a saber, aquela que o risco interdependente ou sistémico transporta até ao âmago dos nossos próprios problemas.

À boleia do risco sistémico cresce muito o risco moral e a eventualidade de um dano colateral e, do mesmo modo, cresce o contencioso de responsabilidade que procura dirimir o que é responsabilidade própria e o que é responsabilidade alheia e/ou coletiva.

Com alguma sorte, talvez possamos obter a mitigação do dano, quase sempre através da socialização do prejuízo que o contribuinte pagará no tempo próprio.

Em oitavo lugar, nas sociedades de risco global e sistémico estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas e, por via delas, as descobertas acidentais.

Este é o grande paradoxo da incerteza. Quanto mais incerteza mais liberdade, uma vez que se alarga o campo das possibilidades e logo, também, o campo do episódio acidental.

Por outro lado, os sinais dessas interações acidentais podem ser de tal modo fortuitas e furtivas que dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais e instrumentais habituais.

Em nono lugar, na era tecnológica e digital a inteligência deixou de estar contida nos limites humanos originais. Com efeito, a inteligência está dispersa e difusa, manifesta-se sob múltiplas formas e interage com praticamente tudo o que nos envolve.

Deste ponto de vista, a realidade não pára de aumentar todos os dias à medida que a inteligência se transfere para ecossistemas e ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência.

Hoje tudo é smart, desde a realidade virtual e aumentada aos interfaces cérebro-computacionais, desde a inteligência dos objetos até à inteligência artificial e ao deep learning machines.

De facto, a nossa inteligência e as faculdades humanas estão a transitar para fora do seu habitat biológico, o corpo humano, para se instalarem em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos.

Por último, a internet, os motores de busca, as redes sociais, os smartphones, na sua vasta imensidão, constituem uma espécie de sexto continente (Covas, A, O sexto continente, Silabo Editora, 2018), se quisermos, uma espécie de modernidade líquida, para usar a expressão do sociólogo Zigmunt Baumann.

De facto, nós mergulhámos num imenso oceano de informação, experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção.

No final do dia, estamos exaustos e no dia seguinte, ainda debilitados, tudo recomeça de novo. Nesta vertigem o foco da atenção converte-se num turbilhão, talvez, mesmo, em delírio e alucinação, saúde mental.

Nota Final

Aqui chegados, constatamos, afinal, que declinar os paradoxos da realidade é um trabalho de Janus, pois estamos a aumentar o campo da realidade antropológica e a multiplicar os ângulos de observação e as perspetivas de olhar para um problema.

A realidade é virtual, a virtualidade é real, e a inteligência deixou de ser meramente neurobiológica para se transferir e instalar em ambientes e ecossistemas digitais que, no limite, podem ser “seres transumanos ou mesmo pós-humanos”.

Porém, talvez a maior limitação para abordar o problem-solving neste novo ambiente seja a descontextualização, nua e crua, que a inteligência automática carrega consigo e que, estou seguro, nos fará passar inúmeras provações.

Por isso, e nas palavras do futurista Gerd Leonhard a propósito dos prodígios da inteligência artificial, pode, talvez, dizer-se: “tal como foi necessário redigir um tratado de não-proliferação de armas nucleares, talvez um dia seja necessário escrever um tratado de não-proliferação de armas de destruição matemática”.

Basta, apenas, que aconteçam alguns acidentes graves cuja responsabilidade seja atribuída, “afinal”, à utilização abusiva de sistemas de inteligência autónomos e automáticos!!

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático aposentado da Universidade do Algarve

 



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