Eleições municipais e sociedade política local

Breve reflexão sobre o futuro do poder autárquico e da sociedade política local

2021 é ano de eleições autárquicas. Pairam muitas nuvens negras sobre a sociedade portuguesa, se pensarmos nas pesadas consequências do período pós-pandemia.

Essa é, também, a razão pela qual os nossos pequenos municípios precisam urgentemente de ganhar mais músculo, sistema nervoso e inteligência coletiva territorial para antecipar e enfrentar esse enorme pesadelo.

Por isso, a esta distância das eleições, julgo que se justifica perfeitamente uma breve reflexão sobre o futuro do poder autárquico e da sociedade política local.

 

1. O que já sabemos

Já sabemos que, de um ponto de vista estrutural e organizacional, o país parece um animal invertebrado a quem falta uma coluna vertebral.

Por um lado, o centralismo, por outro, o localismo. Um país bipolar, portanto.

Na linguagem da nomenclatura das unidades territoriais estatísticas, o país está assente nos níveis NUTS I (central) e NUTS IV (local). Ora, ao contrário, o país devia estar assente nos pilares intermédios, os níveis NUTS II (CCDR) e NUTS III (CIM, comunidades intermunicipais), de modo a criar densidade, massa muscular, sistema nervoso e coluna vertebral para atacar os grandes problemas pós-pandemia e a maior crise de sempre da sociedade portuguesa.

Já sabemos que as macrotendências pesadas afetarão sempre a estruturação, o funcionamento e o desempenho do poder local, se não forem radicalmente alteradas. Estamos cada vez mais próximos do inverno demográfico com pirâmides demográficas invertidas, concelhos demograficamente moribundos e concelhos-lar sem futuro.

Corremos riscos totalmente aleatórios e imprevisíveis de grande monta se não tivermos uma governança multiníveis, realmente efetiva. Os ciclos económicos são cada vez mais curtos, os choques assimétricos têm maior frequência e intensidade, os concelhos caem no banco de urgência e cuidados intensivos cada vez mais, como agora se observa.

Já sabemos que, perante tal crise nacional, nenhum problema local se resolverá apenas no plano local e sabemos, também que esse facto pode gerar a saturação do espaço público municipal, a fadiga e a indiferença dos cidadãos, um abstencionismo crescente e perda progressiva de qualidade do espaço público.

Sabemos, ainda, que muito provavelmente, assistiremos ao esgotamento do modelo financeiro autárquico, um modelo financeiro baseado em transferências e endividamento, pois será sujeito a um grande esforço de investimento para corresponder às exigências da crise pós-pandemia e dos programas de recuperação e desenvolvimento aprovados em Bruxelas. É importante recordar que são os programas que elegem e reconfiguram os territórios e não o contrário.

 

2. O sistema de poder do poder autárquico

O sistema de poder do poder local está organizado em redor de três subsistemas de distribuição de poder: duas circunscrições eleitorais (municipal e distrital), três níveis de administração pública (AC, AR e AL) e três níveis de organização político-partidária (concelhio, distrital e nacional).

Os partidos políticos, os operadores privilegiados do sistema, tentam otimizar a sua implantação, o seu sistema de poder, a sua distribuição de lugares, neste sistema a três dimensões.

Em 2021, 47 anos depois do 25 de Abril, em muitos municípios portugueses, o poder local confunde-se com o poder autárquico e a política local foi, de certo modo, capturada pela omnipresença asfixiante da câmara municipal. Quer dizer, em muitos municípios estamos perante um verdadeiro Estado-Local. No estado bipolar que nós somos, o sistema de poder do poder local pode ser descrito da seguinte forma:

– O sistema desconcentrado funciona no modo vertical e hierárquico, de cima para baixo, por isso, a única legitimidade original é a autárquica;

– O sistema cria muitos simulacros de participação para poder funcionar e criar habituação e rotina;

– O sistema funciona numa lógica utilitarista de necessidades e compensações, de saldo de fluxos, independentemente da sua eficácia, eficiência e efetividade;

– O sistema não tem multi-escalaridade suficiente devido à baixa autonomia dos níveis intermédios;

– O sistema padece de um excesso de institucionalização, ora centralista ora localista, que lhe agrava o vício burocrático;

– O sistema produz muita retórica sobre inovação, mas os territórios de geometria fixa são geralmente mais conservadores;

– O sistema cria um caldo de cultura necessário e conveniente à sua reprodução, sem que tal afete muito a sua reputação.

Chegados aqui, a grande incógnita dos próximos anos é saber se, perante a dimensão da crise económica e social pós-pandemia, assistiremos ao enquistamento e narcisismo deste poder autárquico ou, antes, à sua libertação por via da criação de novos formatos socio-organizacionais nos quais o poder autárquico é um par interpares em estreita articulação com os outros poderes, empresarial, universitário, cultural, mediático, associativo.

Está em causa a construção de uma economia local mais colaborativa, de mais federalismo autárquico e de plataformas digitais que sustentem essas novas comunidades.

Lembro que vamos para um novo período de execução dos fundos europeus e ninguém parece interrogar-se sobre as razões pelas quais as assimetrias territoriais se agravaram em mais de trinta anos de investimento local e regional.

Lembro que, sempre que há um período de ajustamento económico assistimos a uma desvalorização dos ativos do território.

Este será o nosso principal problema, agora e no futuro, a destruição de tecido produtivo sempre que há um período de ajustamento. Neste contexto, não haverá política de desenvolvimento territorial que resista a novos períodos de ajustamento macroeconómico no período pós-pandemia.

Estou, sobretudo, a pensar nesse mar imenso que é o grande país do interior, nesses concelhos-lar do rural remoto que crescem todos os dias à míngua de esperança e gente empreendedora. Necessitamos de mais e melhor inteligência coletiva territorial e de um grande esforço de ordenamento, programação, planeamento e realização.

 

3. O futuro do poder local

Para o poder local o futuro próximo acontecerá em três grandes planos. Em primeiro lugar, no plano tecnológico e técnico-administrativo, com mudanças incrementais que dependem antes de mais dos recursos financeiros disponíveis.

Três grandes vetores afetarão a estrutura técnica e tecnológica do poder local tal como o conhecemos hoje: a desmaterialização, a desintermediação e a automatização.

Estas alterações funcionais modificarão substancialmente a estrutura técnico-administrativa e o capital social das autarquias locais.

Em segundo plano, o que poderíamos designar como o ecossistema comunitário que rodeia o poder local e que se reporta ao universo associativo e às redes colaborativas que ligam esse universo associativo.

Trata-se aqui de criar o complexo digital e colaborativo da administração local interagindo mais com os cidadãos e as suas organizações, muito provavelmente em plataformas de outsourcing muito diversas e imaginativas.

Aliás, estou em crer que a expressão autarquia local passará de moda por invocar autarcia, hierarquia e autoridade. Para já, a única certeza que temos hoje é a de que haverá mais pluralidade e diversidade de poderes locais e que essa nova realidade mudará gradualmente a face do poder autárquico tal como o conhecemos hoje. No final desta década, o poder local estará irreconhecível. Para melhor, esperamos nós.

O terceiro plano, que poderíamos designar de ecossistema institucional, é uma ampla zona cinzenta onde se realizam as principais transações entre níveis de governo e administração, o que a literatura consagrou com as designações de governação multiníveis e multiescalaridade.

Aqui falamos de federalismo autárquico, das diversas modalidades de regionalização, nacionais e transfronteiriças, das alterações da política europeia em matéria de coesão territorial e até de reformas do Estado.

Em síntese, o futuro da gestão do poder local dependerá muito da organização da sociedade política local, em especial, o universo associativo e as redes colaborativas, em segundo lugar, da política interna do município e, em terceiro, da articulação multiníveis de governo e administração sob a forma de ambientes favoráveis e acolhedores.

 

4. A quadratura democrática do poder local

Falar sobre o futuro, sobre as eleições de outubro de 2021, em pleno período pós-pandemia, não se afigura tarefa fácil, o que não quer dizer que não seja necessário e, neste caso, mesmo imprescindível.

E não é fácil, desde logo, porque cada um de nós faz, perante a crise, uma diferente gestão de expectativas na forma como antecipa e perspetiva o futuro. E não é fácil, ainda, falar sobre o futuro porque a velocidade e a contração do espaço e do tempo reduziram o passado e o futuro às dimensões do presente.

A consequência é imediata, estamos a sobrecarregar as tarefas da gestão quotidiana, pois tudo se torna urgente num contexto tão congestionado. As administrações perdem clarividência e discernimento, o município corre o risco de se converter numa instância de último recurso, de socorro e proteção social.

Num contexto bastante severo, quero crer que a política municipal poderia ser organizada em redor de quatro tipos democráticos ou quadratura democrática:

– As relações verticais para cima (AR e AC), a democracia representativa;

– As relações verticais para baixo, cidadãos e grupos de interesses, a democracia participativa;

– As relações horizontais com os outros municípios, o federalismo autárquico, a democracia associativa ou intermunicipal;

– As relações extra-municipais ou extra-territoriais, os territórios-rede de geometria variável, as plataformas, a democracia colaborativa.

Estas relações configuram uma nova ecologia política, institucional e comunitária do poder local do futuro. Há, obviamente, uma autonomia relativa do município face a este sistema de coordenadas, mas o essencial da polity, da policy e da politics municipal será determinado por esta matriz de coordenadas.

A partir desta quadratura democrática é possível imaginar um modelo de governo regional e local muito mais estruturado e complexo em busca, sobretudo, de mais inteligência coletiva territorial que tanta falta fará para enfrentar o período de pós-pandemia.

 

5. A administração municipal no século XXI

Tudo o que já dissemos contempla um município mais aberto, mais cosmopolita, mais conectado e colaborativo. Eis uma descrição das suas principais características:

– Um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação multiníveis em múltiplas formas e modalidades de rescaling;

– Um município mais interativo acordando com grupos de cidadãos práticas inovadoras de crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning e novas comunidades de trabalho;

– Um município mais itinerante na prestação de serviços pessoais domiciliários, tendo em vista a criação de uma genuína economia solidária no concelho e entre concelhos;

– Um município muito mais verde e circular em matéria de recursos ociosos criando uma dinâmica economia colaborativa no que diz respeito ao seu reaproveitamento;

– Um município muito mais virado para a economia criativa e cultural em tudo o que diz respeito à gestão de recursos intangíveis e simbólicos;

– Um município muito mais interativo no que diz respeito à sua orgânica interna, que se traduzirá numa nova relação funcional front-office versus back-office (loja do cidadão);

– Um município um parinterpares, por exemplo, em matéria de parcerias público-privadas mais inteligentes territorialmente;

– Um município mais inovador no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto de todos os seus parceiros;

– Um município mais transparente no que diz respeito à accountability municipal;

– Um município com via verde digital para todas as faixas etárias.

 

Nota Final

O ano de 2021 será um ano decisivo para a nossa vida coletiva. Não podemos voltar ao velho normal, as consequências devastadoras da crise pandémica não são compatíveis com o entretenimento eleitoral, por isso, os municípios têm aqui uma oportunidade para fazer uma genuína pedagogia política em vez de nos tentarem seduzir com o narcisismo dos futuros candidatos.

O esforço de programação e planeamento municipal e intermunicipal no que diz respeito ao programa operacional regional será tão exigente que todos os agentes públicos e políticos irão necessitar do máximo de clarividência e discernimento.

Por isso, eu escrevo este texto com nove meses de antecedência face ao próximo ato eleitoral, pois espero sinceramente que ele sirva de pretexto para alimentar alguma reflexão.

De resto, deve ser lido em conjunto com o artigo publicado no Sul Informação, no dia 29 de janeiro, intitulado «Valorizar o interior, contratualizar com as CCDR e as CIM».

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