O Nordeste Algarvio e o Programa de Transformação da Paisagem

Entre a ilusão e a esperança, creio que as AIGP se integram bem no quadro de medidas de política prometidas pela bazuca europeia

Hesitei em escrever este artigo, mas, como vivo entre a ilusão e a esperança, aqui vai mais um escrito sobre o Nordeste Algarvio, desta vez a propósito do Programa de Transformação da Paisagem (PTP), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 49/2020 publicada no DR nº 121/2020 de 24 de junho.

No dia 5 de janeiro de 2017, escrevi no Sul Informação um artigo sobre o Nordeste Algarvio e no dia 7 de março de 2019 publiquei um outro artigo sobre o centro de competências de Alcoutim, a propósito de abandono e desertificação.

Vou repetir uma parte desses escritos porque, infelizmente, neste caso do Nordeste Algarvio, a inércia da história é, mesmo, tragicamente confrangedora.

Com efeito, no último quarto de século aplicámos todo o tipo de medidas de política no território do Nordeste Algarvio: programas integrados de desenvolvimento rural (PIDR), os centros rurais, o programa nacional de combate contra a desertificação, as medidas agroambientais e agroflorestais da reforma da PAC de 1992, o programa Leader de desenvolvimento rural, os programas de desenvolvimento rural dos vários quadros comunitários de apoio (QCA), os programas operacionais regionais da região NUTS II.

Em todos os casos, o Nordeste Algarvio resistiu, como se quisesse dizer que o seu problema se transformou numa doença crónica, à qual têm de se submeter todos os peritos da engenharia política do território.

Citando um dos artigos dessa época, “passaram vinte anos sobre as compensações ao rendimento concedidas ao abrigo do regulamento comunitário 2080, pergunto, temos hoje uma economia agroflorestal digna desse nome? Temos hoje uma multifuncionalidade e pluriatividade dignas desse nome? Interrompemos o círculo vicioso de desertificação e despovoamento? Ao menos, “turistificámos” o interior remoto e o Baixo Guadiana? Em matéria de cooperação transfronteiriça, fizemos progressos dignos desse nome? Já temos a navegabilidade do Guadiana assegurada até Alcoutim? Infelizmente, fizemos apenas política de mitigação e não podemos afirmar que invertemos a tendência longa do nordeste algarvio”.

E acrescentei logo de seguida: “Nos próximos vinte anos, as medidas agroambientais e agroflorestais no nordeste algarvio continuam a fazer sentido, por maioria de razão devido às alterações climáticas, mas precisam de ser reenquadradas num outro modelo de desenvolvimento do nordeste algarvio, um modelo que abranja todo o Baixo Guadiana e que recupere a multifuncionalidade agrossilvopastoril por via de uma nova geração de pagamentos ambientais ou ecossistémicos. Sem esta associação entre multifuncionalidade e pagamento de serviços será o definhamento inelutável do nordeste algarvio. O Nordeste Algarvio precisa, porém, de alguns embaixadores para poder reescrever o seu futuro: dois ou três ícones histórico-culturais, dois ou três percursos de natureza de grande qualidade, dois ou três produtos de marca de elevada qualidade, duas ou três boas práticas de economia circular, dois ou três endemismos florísticos ou faunísticos para observação, dois ou três eventos de grande prestígio, duas ou três residências permanentes de natureza artística e/ou científica. E, fundamentalmente, um ator-rede que esteja sempre presente e que faça a reticulação do conjunto”.

 

O Programa de Transformação da Paisagem (PTP)

É neste contexto e nesta já longa sequência, que surge o Programa de Transformação da Paisagem. Quero crer que vale a pena explicitar o essencial do programa, pois a sua literatura é, aparentemente, muito inclusiva.

A Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 49/2020 de 24 de junho criou o Programa de Transformação da Paisagem (PTP). Pela importância de que se reveste para o desenvolvimento dos territórios do interior, trago ao conhecimento dos leitores algumas passagens dessa Resolução.

“Os espaços florestais, área arborizada, matos e pastagens, que ocupam quase 70 % da área terrestre de Portugal continental, constituem um elemento vital da paisagem rural e de sustentação e conetividade dos ecossistemas, além de uma âncora económica, ambiental e social dos territórios e da sua memória coletiva. Desempenham um papel determinante para o sequestro de carbono, indispensável para que Portugal possa atingir a neutralidade carbónica em 2050 e cumprem, ainda, um importante papel na regulação dos diferentes ciclos naturais, tendo uma função estruturante para a conservação da natureza e biodiversidade”.

“Não obstante, em parte significativa destes espaços florestais, as características físicas, como o relevo ou solos pobres, o acentuado despovoamento e envelhecimento da população, e consequente abandono do modelo agro-silvo-pastoril, a par de uma extrema fragmentação das propriedades, determinam um quadro marcado por extensas áreas florestais de monocultura, a sua maioria não geridas, que, em presença de condições atmosféricas adversas, atingem níveis de perigosidade de incêndio extremo, pondo em causa pessoas, animais e bens, incluindo património natural e cultural”.

“Para estes contextos, impõe-se desenvolver respostas estruturadas e sustentáveis ambiental e financeiramente de forma a aumentar a sua resiliência socio-ecológica e contribuir para o seu desenvolvimento integrado, a partir do reordenamento da paisagem, conjugada com um mosaico agrícola, agroflorestal e silvo-pastoril, capaz de prestar diversos serviços ambientais e de sustentar as atividades económicas que lhes estão associadas, reduzindo significativamente a severidade da área ardida.
Para o efeito, é fundamental motivar os proprietários, preferencialmente constituídos em agrupamentos, a investir e gerir as suas propriedades rústicas, incluindo no contexto pós-fogo, de modo a quebrar o ciclo de desinvestimento e a promover a gestão ativa, o ordenamento e a revitalização das áreas florestais de minifúndio”.

“Com base nestes pressupostos, o Governo definiu medidas concretas para intervir no espaço rural, promovendo a diversificação da paisagem, a diminuição da carga de combustível, o aumento da área florestal gerida e a reconversão e densificação da área existente para espécies mais adaptadas ao território, incluindo agrícolas, tendo em vista a sua resiliência aos riscos, nomeadamente de incêndios, e a valorização da paisagem numa ótica multidimensional e promotora do sequestro de carbono”.
É precisamente a obtenção de escala – unidades de paisagem mínimas – um dos fatores críticos de sucesso das ações de gestão e ordenamento no contexto destes territórios, atendendo à sua estrutura de propriedade, extremamente fragmentada. Este perfil de estrutura fundiária, associada aos desincentivos que o elevado risco de incêndio e as baixas rentabilidades representam, afastam não só os proprietários de investirem nas suas propriedades, como são fator de bloqueio ao desenvolvimento de soluções coletivas, na medida em que estão dependentes da ação conjunta e concertada de inúmeros proprietários”.

 

Os princípios orientadores do Programa de Transformação da Paisagem

Perante estes condicionalismos, importa desenhar, para os territórios vulneráveis, incentivos ajustados às características e constrangimentos específicos, que prevejam instrumentos suficientemente flexíveis, atrativos e mobilizadores, mas também vinculativos, que impulsionem as entidades locais a avançarem para projetos coletivos, acompanhados da respetiva adesão dos proprietários florestais.

A RCM estabelece como princípios orientadores do PTP:

a) O suporte e a remuneração da transformação da paisagem de longo prazo, através de um processo participado de base local que reforce a cultura territorial e a capacidade dos atores do território;

b) A adoção de políticas públicas de natureza ambiental que alinhem os interesses da sociedade e das gerações futuras com os dos proprietários e gestores da terra, de modo a promover uma maior justiça interterritorial e intergeracional;

c) A aplicação à propriedade rústica de uma gestão sustentável como pilar do ordenamento do território, viabilizando-a nos territórios de minifúndio através da sua valorização produtiva e do reconhecimento e compensação das externalidades positivas;

d) A defesa do interesse público na assunção da gestão dos prédios rústicos não geridos e sem dono conhecido, designadamente no que se refere à execução das ações de defesa da floresta contra incêndios e prevenção de riscos bióticos (pragas e doenças) e abióticos;

e) O acompanhamento próximo dos projetos e boa monitorização e avaliação de resultados em função de metas e objetivos estabelecidos, baseados em indicadores de eficiência e eficácia económicas e sustentabilidade territorial;

f) A definição de modelos de intervenção expeditos e flexíveis, em particular no pós-fogo de modo a acionar, no imediato e in loco, as ações necessárias à estabilização de emergência.

 

As medidas programáticas de intervenção do PTP

O Programa de Transformação da paisagem prevê as seguintes medidas programáticas de intervenção:

a) Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem (PRGP), destinados a promover o desenho da paisagem como referencial de uma nova economia dos territórios rurais;

b) Áreas Integradas de Gestão da Paisagem, que definem um modelo de gestão agrupada, operacionalizado através de Operações Integradas de Gestão da Paisagem (OIGP), dirigido a contextos microterritoriais específicos;

c) «Condomínio de Aldeia», Programa Integrado de Apoio às Aldeias localizadas em territórios de floresta, com o objetivo de assegurar a gestão de combustíveis em redor dos aglomerados populacionais nas áreas de grande densidade florestal e elevado número e dispersão de pequenos aglomerados rurais;

d) Programa «Emparcelar para Ordenar», com vista a fomentar o aumento da dimensão física dos prédios rústicos em contexto de minifúndio e, assim, aumentar a viabilidade e sustentabilidade económica, social e ambiental.

 

Notas finais

Nessa altura escrevi: “O regulamento 2080 reduziu substancialmente o uso múltiplo da floresta, deu início a uma monocultura florestal de pinheiro, implantou a chamada floresta de proteção com uma densidade muito elevada por hectare. Esta monocultura florestal, ao quebrar o delicado equilíbrio que vinha de trás, pode ter resolvido as compensações ao rendimento durante algum tempo, mas bloqueou outras soluções possíveis ao alcance da agrossilvicultura que teriam, talvez, poupado a pluriatividade e a multifuncionalidade do nordeste algarvio”.

Entretanto, o Eng. Victor Louro, no livro “A floresta em Portugal” (2016) da Editorial Gradiva (p.234) escreveu:

– O coberto arbóreo protege o solo através de uma manta viva, isto é, de matos que nascem e crescem numa floresta relativamente aberta, não muito densa,

– A instalação da floresta pode ser obtida com uma baixa mobilização do solo,

– Uma correta instalação e gestão permite um controlo adequado do escoamento superficial das águas, poupando mais uma vez o solo,

– As técnicas de extração do material lenhoso e cortiça devem ter em conta a necessidade de não compactar o solo, usando equipamento adequado para não abrir rastos que venham a ser outros tantos barrancos de escorrimento das águas.

– A chamada limpeza dos matos feita de qualquer maneira e levando tudo à sua frente é um erro crasso por não alimentar, justamente, a manta morta.

Quer dizer, com uma silvicultura mais policultural teria sido possível conservar e melhorar a multifuncionalidade da economia agroflorestal do Nordeste onde também se inclui, por exemplo, um maior equilíbrio por via da recolonização da azinheira e a instalação de pastagem biodiversa para os pequenos ruminantes. Todavia, a descapitalização das famílias, o envelhecimento acelerado e a degradação do capital simbólico desta sub-região não consentiram que tal acontecesse.

Deixo aqui uma sugestão. No quadro do PTP prevê-se a criação das áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP) com a finalidade de promover a gestão dos espaços agroflorestais em zonas de minifúndio e de elevado risco de incêndio.

O modelo preconizado é orientado para comunidades locais concretas, na medida em que a sua constituição depende da mobilização dos produtores e proprietários, pelo que o envolvimento dos interlocutores locais, como as autarquias, nestes contextos rurais despovoados e envelhecidos, são fator indispensável para credibilizar e convencer os proprietários a aderirem a modelos de gestão coletiva.

O modelo prevê, para além das Entidades Gestoras das Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as Unidades de Gestão Florestal (UGF) enquanto nova forma de organização dos produtores e proprietários para a gestão agregada dos espaços florestais e agrícolas, em particular de minifúndio.

O modelo das AIGP prevê, também, a disponibilização de instrumentos financeiros que garantem rentabilidades previsíveis e estáveis a médio prazo. Estes apoios incluem, a curto prazo, o financiamento à constituição e funcionamento das entidades responsáveis pela administração e gestão das AIGP, mediante a celebração de contratos-programa.

Como elemento inovador para impulsionar as entidades locais e proprietários a avançarem com a constituição da AIGP, destaca-se a introdução da modalidade Multifundos que conjuga, para a mesma área objeto de apoio, os instrumentos de financiamento do Fundo Europeu de Desenvolvimento Rural e do Fundo Ambiental, disponibilizando apoios não só ao investimento, mas também à manutenção e gestão a médio prazo, assim como da remuneração dos serviços dos ecossistemas, que tomará a forma de uma remuneração-base em função da área gerida enquanto vigorar o presente quadro de apoios, permitindo condições de remuneração estáveis e previsíveis a médio prazo.

Entre a ilusão e a esperança, creio que as AIGP se integram bem no quadro de medidas de política prometidas pela bazuca europeia, com expressão no programa de recuperação e no futuro acordo de parceria, bem como, no programa operacional regional do Algarve.

É um programa para uma década, porém, se não tivermos uma estrutura de missão ou um ator-rede para o Nordeste Algarvio e o Baixo Guadiana não seremos bem-sucedidos, pois sem permanência não haverá competência.

 

 

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