Dia da Terra é coisa de “drógádos” e o Algarve é um fiel de armazém

A agenda “verde” da União Europeia, por bem intencionada que possa ser, continua comprometida com o conceito do crescimento contínuo

Ontem, dia 22 de Abril, comemorou-se o 50º Dia da Terra.

​Esta efeméride compete com o livro “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, editado em 1962, pelo título honorário de data de lançamento do movimento ambientalista moderno, e teve o seu início com uma das maiores acções políticas na história dos Estados Unidos da América, com focos por todo o país.

A instituição desta data em 1970 resgatou o despertar de uma consciência ecológica alargada de uma frequente, injusta e redutora associação aos emergentes e muito turbinados movimentos New Age, com os seus arco-íris (a haver na altura uma hashtag, seria talvez #vaificartudopedrado), passando a integrá-la na agenda política “dos crescidos” e da “gente séria”.

Passado meio século, o Mundo inteiro honra e comemora o Dia da Terra com uma redução significativa nos seus vectores de degradação ambiental. Não por opção ou tomada de consciência mas por ter sido obrigado.

 

 

E se hoje continuássemos a comemorar o Dia da Terra, mudando algo?

A presente pandemia e a quarentena em que mergulhou o Mundo tem, para além dos tremendos impactos negativos que lhe são reconhecidos, aspectos positivos.

Um deles é o de, face à paragem de parte significativa das actividades produtivas e dos transportes à escala planetária, permitir a este calhau girando em torno do Sol respirar um pouco melhor, com redução instantânea de emissões de gases com efeito estufa e outros poluentes.

Vai daí, por exemplo, hotspots clássicos de insalubridade ambiental viram-se, ainda que temporária e circunstancialmente, aliviados – o que seguramente trouxe impactos positivos em todos os outros aspectos de saúde pública que continuam a existir para lá da Covid-19.

Outro aspecto positivo foi a demonstração de que nos conseguimos adaptar a novas modalidades de funcionamento, até há semanas impensáveis. Não nos vemos, naturalmente, a viver perpetuamente assim, principalmente porque não houve tempo para qualquer preparação consistente, sendo tudo na base do improviso e do remedeio.

Mas, e se planeássemos algo diferente a partir deste momento? Não porque este vírus seja messiânico ou um mensageiro do amor – nas palavras de um consagrado guru da auto-ajuda – e o momento de epifania global, mas porque qualquer pretexto é bom para operar uma qualquer mudança!

O modelo económico em torno do qual organizamos toda a nossa vidinha é, grosso modo, uma monumental cagada. Por um lado, a sua base produtivista e consumista originou um conjunto de objectos e processos que, após normalização e aculturação pelo mecanismo da publicidade, foram globalmente convencionados como sendo padrões de qualidade de vida e de conforto – antidepressivos com botão on/off.

Com generosas pitadas de crédito, o acesso a eles democratizou-se e, mesmo que ilusoriamente – e nestas coisas conta mais a percepção do que a realidade – e mais por contexto do que por estrutura, as condições em que muitos vivem melhoraram.

Mas, de caminho, foi-nos passada uma factura ambiental – e social, regra geral associada aos pontos de produção e às condições salariais que permitem os baixos preços – assim a puxar para o calamitoso. E vamos vivendo da alienação de capital natural e património planetário, em vez de rendimentos.

É-nos depois passado pelo pêlo o bálsamo pacificador de toda a efabulação matemática e estatística com que a Economia nos brinda, para nos convencer que não há problema e que se crescermos mais – até ao infinito e mais além – tudo se resolverá.

 

Ora, o que a Economia desde há muito despreza não é outra coisa senão a Ecologia. Ou, não querendo uma tal abordagem hippie, ignora a termodinâmica, concretamente a sua segunda lei que, resumida e simplificadamente, estipula o aumento da entropia ao longo do tempo, por degradação da energia em cada transformação. No caso, esta manifesta-se nos desperdícios do sistema produtivo, concretamente poluição, resíduos, desequilíbrios ambientais, etc.. Ora, se algo não é ecologicamente viável, como pode ser economicamente razoável?

Kenneth Boulding – professor de Economia, note-se! – explicou há quase meio século: quem acredita em crescimento infinito num planeta finito ou é louco ou é economista.

Muitos verão nisto uma crítica ao capitalismo. Não é. Quer se digam capitalistas ou marxistas, a esmagadora maioria dos Governos mundiais (para não dizer a totalidade) almeja e obedece à ideologia do crescimento ilimitado, partilhando a húbris do desprezo pela importância dos recursos naturais. Há portanto, isso sim, uma objecção de crescimento, como diria Latouche.

Pois bem, a Economia mundial está pelas ruas da amargura, como se sabe. Porque o petróleo não escoa, porque o consumo baixou, porque as ilusões cotadas em bolsa se tornaram insignificantes face à realidade, etc.. E a realidade faz com que hoje em dia contem mais as necessidades básicas do que as acessórias, daí a importância de coisas triviais como… a comida. E o papel higiénico, claro está.

A melhor ocasião para reparar qualquer mecanismo e trocar peças é quando está parado. O que se pretende é uma transição, não uma quebra da “roda”, à moda da Daenerys Targaryen, ou dos partidários de Ned Ludd, atacando e destruindo os teares de hoje.

Na ressaca da crise, muitas empresas – algumas de forma perfeitamente imoral, face aos lucros obscenos que obtiveram no passado – pretenderão socorrer-se de ajudas governamentais. Ao mesmo tempo, a Europa tem em cima da mesa, desde final de 2019, o Pacto Verde Europeu (European Green Deal), todo por cumprir.

Haverá melhor ocasião para o implementar, condicionando e indexando a concessão de apoios – seja nos orçamentos nacionais ou nos mecanismos de financiamento comunitário, naturalmente de forma proporcional – às empresas ao cumprimento das suas metas e às necessárias mudanças que este documento advoga?

​O PVE é, basicamente, um manifesto de intenções da Comissão Europeia, no sentido de transformar a união Europeia numa sociedade justa e próspera, com uma economia eficiente no uso dos recursos e competitiva, em que não existirão emissões líquidas de gases com efeito estufa em 2050. Mais, pretende fazê-lo através de um processo justo e inclusivo, com as pessoas em primeiro lugar (inclui Mecanismo e Fundo de Transição Justa) e um leque alargado de objectivos sectoriais, desde a eficiência energética à biodiversidade, passando pela fiscalidade verde, a mobilidade ou a segurança e autonomia alimentar.

 

Resumo esquemático do Pacto Verde Europeu da Comissão Europeia

 

Desde logo, a Comissão reconhece implicitamente, ao empreender esta tarefa ambiental e climática, definidora de uma geração, que não é nada do que pretende ser. E que os seus esforços serão ineficazes se isolados no contexto mundial. Mas reconhece também que o apertar da malha ambiental pode originar (mais) deslocalização de produção para países menos restritivos – “carbon leakage” – assumindo-se incapaz de estancar tal processo (1).

Mas a União Europeia encara o desafio, e pretende ser um líder mundial nesta matéria, pelo exemplo e pela diplomacia (se for tão hábil e sensível a lidar com parceiros mundiais como foi internamente na gestão desta crise…). No entanto, a sua agenda “verde”, por bem intencionada que possa ser, continua comprometida com o conceito do crescimento contínuo, e não tem rasgo ou ousadia, no sentido de mudar efectivamente de valores essenciais ou de paradigma. Mas é um passo.

O que necessitamos é de agendas que preparem decrescimentos estratégicos, faseados. O conceito do decrescimento é largamente visto como uma utopia, principalmente por intoxicação do imaginário, mas alguns dos seus princípios vingam já hoje como certezas – caso da Economia Circular.

Regiões periféricas, reduzidas única e exclusivamente a uma economia de serviços (ainda para mais monofuncional, e de elevado desperdício, como o turismo) e totalmente expostas às famigeradas externalidades, não decidem o seu futuro. São como que um fiel de armazém. Por muito arrumado que esteja o stock, por muito eficiente que seja a organização, se o mandarem fechar a porta… fecha, porque nada lhe pertence, apenas trabalha ali. A menos que decida mudar de vida e abrir o seu próprio armazém.

Alguns dos princípios do decrescimento, concretamente a reavaliação (redefinição de valores orientadores), a relocalização (aproximação da produção ao consumo, da decisão ao impacto) e a redução (limitar excessos de consumo e desperdício), poderiam neste nosso canto gerar mecanismos de diversificação económica e reforço da resiliência, alterando o modelo territorial e aproveitando recursos endógenos de novas – ou velhas, em muitos casos – formas. Um trabalho de décadas, porque não podemos largar tudo o que temos instantaneamente. Mas que tem que arrancar.

Seja como for, a sua aplicação implica claramente uma revolução. Ainda por cima uma revolução reaccionária, com tanto de progressista como de conservadora. Essa revolução é, acima de tudo, política. Não tanto ao nível dos decisores (esfera refém dos partidos políticos), mas principalmente da sociedade, de todos nós enquanto colectivo consciente e participativo. Um colectivo focado no ecoantropocentrismo, um palavrão que basicamente quer dizer que temos que perceber o nosso papel na casa que partilhamos e em que nos inserimos, influenciando e sendo influenciados.

É, no fundo, um trabalho de (re)aprendizagem que temos que empreender.

Ou então nada disto, e confiamos que a sorte nos voltará a sorrir, porque no fundo de todos estes arco-íris há realmente um pote de ouro à espera.

Em vésperas de comemoração do 25 de Abril, vale a pena pensar em mudanças.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

Nota 1) a proposta veiculada de ecotaxas aduaneiras para o efeito é inverosímil, em parte devido à previsível – mas não forçosamente negativa – insustentabilidade política e comercial do aumento de preços, mas também por acordos comerciais internacionais, como o CETA, que permitem às corporações contornar administrativamente as fronteiras, e ainda processar Estados (cada vez menos soberanos) quando entendam que as suas expectativas de lucro tenham sido defraudadas.

 

 




 

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