Toda a imprensa do Algarve desde 1810 já está à distância de um clique

A hemeroteca consegue finalmente concretizar o sonho de Luís Guerreiro

São já 200 mil páginas, mas hão-de chegar às 400 mil. A Hemeroteca Digital do Algarve, que vai reunir os 400 títulos de imprensa editados na região algarvia desde 1810, contando 200 anos de história, já está disponível online, clicando aqui.

A hemeroteca (que é uma biblioteca só de jornais) consegue finalmente concretizar o sonho de Luís Guerreiro, falecido em 2017, de reunir num só sítio – neste caso, virtual – os jornais, revistas, almanaques e boletins, ou seja, todas as publicações periódicas algumas vez impressas e editadas no Algarve.

O projeto, que venceu o Orçamento Participativo Portugal em 2017, garantindo um financiamento de 200 mil euros para a sua concretização, foi lançado oficialmente este domingo, na Fundação Manuel Viegas Guerreiro, em Querença, cujo anterior presidente, Luís Guerreiro, foi o mentor e principal impulsionador da ideia.

Gabriel Gonçalves, atual presidente da Fundação, recordou que «desde 2015 que, com a liderança do Luís Guerreiro, se procurava fontes de financiamento para este projeto, sempre sem êxito». Quando surgiu o OPP, Luís Guerreiro, já «com a sua saúde debilitada», «viu aqui a oportunidade» e tão desejoso estava que «até apresentou a candidatura escrita à mão». E ganhou, ainda que não tenha vivido o suficiente para saber isso.

 

Patrícia de Jesus Palma e Salomé Rocha

Como recordou Patrícia de Jesus Palma, coordenadora científica do projeto, Luís Guerreiro, bibliófilo e investigador sobre a História Regional e Local, nas suas pesquisas, «umas das fontes primordiais que usava era a imprensa regional», pelo que tinha «bem presentes as dificuldades de acesso» aos jornais, espalhados em bibliotecas, arquivos e coleções de vários pontos do país. Daí o seu sonho.

A apresentação pública da Hemeroteca Digital contou com casa cheia e duas secretárias de Estado, Fátima Fonseca, da Inovação e Modernização Administrativa, e Ângela Ferreira, do Património Cultural, bem como com a diretora regional de Cultura (Adriana Nogueira), o vice-reitor da Universidade do Algarve (Saul Neves de Jesus) e ainda o presidente da Fundação, Gabriel Gonçalves.

«Conseguimos criar uma coisa que não existia: uma coleção que está num único espaço acessível a todos», explicou Patrícia de Jesus Palma ao Sul Informação. «As publicações periódicas algarvias estão espalhadas pelo país todo. Estão na Biblioteca Nacional, na Biblioteca Pública do Porto, nos arquivos, bibliotecas e museus do Algarve, nos acervos e coleções particulares. Grande parte do nosso trabalho foi cartografar as publicações em repositórios públicos e privados».

A Hemeroteca está em fase de carregamento das imagens digitalizadas. Até agora, como revelou Salomé Horta, da Biblioteca da Universidade do Algarve e coordenadora executiva do projeto, foram carregados 108 títulos, dos 400 que estão digitalizados. Até ao fim da semana, espera esta responsável, deverão estar carregados 160 títulos, prolongando-se essa tarefa pelo próximo ano.

 

Gabriel Gonçalves e Adriana Nogueira, na assinatura do protocolo – Foto: Filipe da Palma

 

De acesso livre e gratuito, neste link, estarão disponíveis todas as publicações periódicas algarvias até agora conhecidas, desde 1810 até 1949, «por razões de direitos de autor». Mas foi tudo digitalizado até 1974. Esses anos mais recentes estarão disponíveis, mas apenas a partir de três pontos de acesso, na Direção Regional de Cultura (entidade que coordenada todo o projeto da Hemeroteca Digital), na Fundação Manuel Viegas Guerreiro e ainda na Biblioteca da Universidade do Algarve. O protocolo para garantir esse acesso especial foi também assinado ontem.

Salomé Horta explicou que a Direção Regional de Cultura «desafiou» a Biblioteca da UAlg «a aceitar executar e acolher este projeto no futuro». Trata-se, salientou, de um projeto «identitário, supramunicipal e sustentável».

A fase de inventário começou em Maio de 2018, num «processo muito trabalhoso», já que «a coleção física dos jornais está espalhada por muitos sítios» pelo país fora. Patrícia Palma e a estagiária Ana Rita Belchior «passaram um mês na Biblioteca Nacional, a ver os jornais, um a um».

Nessa tarefa, houve um «parceiro fabuloso», a Biblioteca Nacional de Portugal, que «digitalizou a sua coleção, mas também todas as que vieram de outros locais. Foi um trabalho monstruoso de digitalização».

 

 

Ainda que nem metade dos títulos estejam já carregados na base de dados, há por lá verdadeiras preciosidades, que foram apresentadas por Patrícia Palma e Salomé Horta na sessão de Querença. Uma delas é, por exemplo, A Juventude, um jornal editado em 1917, e que se apresentava como «semanário de recreio dedicado às gentis damas louletana».

Dado curioso é o facto de o primeiro jornal impresso no Algarve não o ter sido em língua portuguesa…mas espanhola. Foi em 1810, a Gazeta de Ayamonte, publicada por quem, naquela zona da vizinha Espanha, resistia às invasões francesas. Pode, por isso, dizer-se que «a primeira publicação periódica da atual região de Huelva é, afinal, impressa em Faro», como brincou Patrícia Palma.

E só 23 anos depois, a 15 de Julho de 1833, surgiria então o primeiro periódico editado em língua portuguesa: foi a Chronica do Algarve, dirigida por Manoel António Ferreira e custando «40 réis cada número».

O primeiro jornal algarvio a integrar fotografia foi O Algarve Illustrado, que se publicou em 1880 e 1881. Mas também aqui há pormenores curiosos. Patrícia Palma recordou que as fotografias eram coladas no jornal depois deste impresso e não eram impressas diretamente (nessa altura, os jornais eram feitos em tipografia e publicar uma imagem implicava fazer uma muito cara gravura metálica). Essa particularidade d’O Algarve Illustrado leva a que, como mostrou a investigadora, «de um mesmo número do jornal haja várias versões, com fotografias diferentes».

De todos os títulos algarvios publicados ao longo de 200 anos, «mais de 70% do acervo encontra-se na Biblioteca Nacional», em Lisboa, seguindo-se a Biblioteca Pública do Porto, com 20%, e a Biblioteca da Universidade do Algarve, em terceiro lugar, «graças à doação da coleção de Mário Lyster Franco».

 

 

 

«Dos nossos maiores prazeres, foi a descoberta daquela folhinha a que já ninguém ligava, efémera», sublinhou Patrícia Palma. A investigadora recordou o caso do Almanach de Tavira, de 1833, que se sabia, por outras fontes, ter sido publicado, «mas que não se localizava em parte nenhuma». Até ao dia em que um senhor, o colecionador Luís Fraga da Silva (que também contribuiu para a Hemeroteca Digital), «pôs no Facebook que tinha encontrado no lixo» esse almanaque.

E nesses almanaques (ou almanachs, como então se escrevia), recorda a investigadora, sabe-se muito da vida da época, porque tratam de «literatura, produção agrícola, têm imagens, publicidade». «É toda uma história do século XIX que se pode fazer».

Na pesquisa feita nos arquivos e bibliotecas, foram identificados «jornais impressos, manuscritos e datilografados», mas também «o original manuscrito da edição impressa». Quando a base de dados estiver completa, tudo isso estará acessível online…é é todo um mundo novo que se abre à investigação.

Para já, a Hemeroteca Digital permite pesquisar por Título, Ano de Edição, Diretor e Local de Edição. «Mas vai ser possível, daqui a seis meses, fazer a pesquisa no texto integral, por palavras, por assunto, por autor». Esta é uma funcionalidade que ainda está a ser desenvolvida, mas que trará novas e mais facilitadas possibilidades para os investigadores e para os simples curiosos.

Patrícia de Jesus Palma fez questão de sublinhar que todo este acervo que agora passa a estar reunido num só sítio é «garantidamente um recurso fundamental para alterar a imagem do Algarve como uma região pobre do ponto de vista cultural». Pelo contrário, sublinhou, «o Algarve sempre foi uma região virada para o mundo e isso é clarinho como a água!»

O financiamento de 200 mil euros garantido pelo governo através do Orçamento Participativo Portugal permitiu investigar, cartografar, digitalizar, criar o site e carregá-lo com tudo o que se sabe existir até agora.

Mas Patrícia Palma admite que há ainda falhas, «jornais que sabemos terem existido por referências que lhes são feitas noutros locais», mas que não foi ainda possível encontrar. Por isso, não só o trabalho dos investigadores terá de ter continuidade, como se apela ao contributo de outras pessoas, do Algarve e não só, que possam ter, nos seus arquivos ou coleções, mais publicações que ajudem a colocar mais uma peça neste longo puzzle.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e Filipe da Palma (quando indicado)

 

Frases…

Saul Neves de Jesus, vice reitor da Universidade do Algarve

«É com grande satisfação que a Universidade do Algarve participa na concretização desta Hemeroteca Digital». Trata-se de um «projeto muito importante», que resulta de «parcerias internas, entre a Biblioteca e os Serviços de Informática da Ualg», que «criaram as condições para alojar e disponibilizar esta hemeroteca». Mas resulta também de uma parceria entre a UAlg e entidades externas, como a Biblioteca Nacional.

 

Fátima Fonseca, secretária de Estado da Inovação e Modernização Administrativa

Classificou a Hemeroteca Digital como um «maravilhoso projeto», que passa por «utilizar com inteligência e estratégia a tecnologia, pensada por pessoas para pessoas e de forma colaborativa».

 

Ângela Ferreira, secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural

Recordou que, no Orçamento Participativo Portugal de 2017 e 21018, os projetos da Cultura «foram os que mais se candidataram e os que mais reuniram votação».

A Hemeroteca Digital é, na sua opinião, «um exemplo de articulação entre Cultura e Cidadania, com o desiderato de divulgação do acesso à Cultura».

 

E uma (boa) surpresa…

A apresentação pública da Hemeroteca Digital do Algarve começou com a atuação do grupo «Esfinge». Com a bela voz de Maria João Jones, a guitarra de Luís Caracinha, o baixo de Fernando Júdice (sim, esse mesmo, dos Trovante, Madredeus), o violoncelo de Bárbara Santos e ainda percussão, foram apresentados três temas: «Efeméride», «Nix» e «Ode a Dionísio». Para muitos, foi uma boa surpresa.

 

…e outra boa surpresa

A culminar, houve Momentos de Bem-Querença, no restaurante Tasquinha do Lagar.

 

 

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