«Mataram o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro!» – A notícia do regicídio no Algarve

A notícia do regicídio chegou ao Algarve através dos passageiros do comboio da madrugada

Na tarde de sábado, 1 de Fevereiro de 1908, dia de sol e morno, em pleno Terreiro do Paço em Lisboa, o rei D. Carlos foi assassinado, juntamente com o príncipe herdeiro D. Luís Filipe. A família real regressava de Vila Viçosa e seguia em coche aberto quando o monarca e o filho foram alvejados a tiro. Foi há pouco mais de 111 anos.

O prestígio da monarquia encontrava-se em declínio desde o Ultimato britânico, que já aqui recordámos, a que se juntou a grave crise financeira de 1890/91.

Ainda a 31/1/1891 uma revolta no Porto proclamou, por algumas horas, a República. Nos anos seguintes o país tornou-se ingovernável.

Os dois partidos que até então se revezavam no poder, progressistas e regeneradores, cindiram-se em cinco, enquanto os republicanos paulatinamente afirmavam os seus ideais.

Para o Prof. Fernando Rosas, as camadas sociais urbanas, excluídas ou marginalizadas do sistema, viam na República a esperança para o fim da exclusão, humilhação e exploração em que viviam.

Era assim uma base popular de operários, pequenos comerciantes, artesãos, marinheiros, modestos funcionários públicos, pequenos proprietários que ansiavam e lutavam por uma mudança de condições de vida. Povo que acorria a ouvir os dirigentes republicanos, que lhes acenavam com um «mundo novo», só possível com uma mudança de regime.

O Algarve não estava alheado dos novos ideais, também aqui ocorriam comícios republicanos, reunindo centenas de simpatizantes.

Em 1906, João Franco, que criara o Partido Regenerador Liberal em 1901, ocupou a presidência do Conselho de Ministros, apresentando-se como um liberal que procurava encontrar uma saída para a paralisia das instituições.

Em simultâneo, combateu o republicanismo, que desenvolvia a sua propaganda perante a incapacidade de a monarquia mostrar empenho em governar o país de uma forma diferente.

Entretanto, foi tornado público que o governo concedia com frequência adiantamentos em dinheiro à família real, os quais nunca eram liquidados ao Estado, o que foi considerado um escândalo.

O governo de Franco empreendeu medidas repressivas contra a liberdade de imprensa e contra os republicanos e, em maio de 1907, avançou para a Ditadura, com a dissolução do parlamento.

No fim daquele ano, as eleições municipais foram adiadas, sendo nomeadas comissões administrativas. Medidas que não agradaram e toda a oposição, monárquicos e republicanos, se uniu contra João Franco e D. Carlos.

A 28/1/1908, um golpe de Estado, sob o comando da Carbonária, abortou na capital. Em consequência, o governo estabeleceu medidas ainda mais repressivas, com perseguições e prisões arbitrárias, que seriam complementadas com a expulsão dos envolvidos.

Decreto que o rei promulgou em Vila Viçosa, a 30 de janeiro. Dois dias depois, de regresso à capital, D. Carlos, juntamente com o príncipe D. Luís, foram assassinados em Lisboa.

João Franco, no mesmo dia, logrou salvar-se a dois atentados, porém, no dia seguinte era afastado da chefia do governo.

Os regicidas, Manuel Buiça, natural de Valpaços, professor e ex-militar, e Alfredo Costa, de Casével (Castro Verde), editor e caixeiro, foram abatidos no local.

As cerimónias fúnebres de D. Carlos e de D. Luís Filipe ocorreram oito dias depois, enquanto os assassinos foram a enterrar a 11 de fevereiro.

Apoiados na imprensa, nomeadamente «O Século» e o Diário de Notícias», tentaremos visitar a região por aqueles conturbados dias.

Assim, a notícia do regicídio chegou ao Algarve através dos passageiros do comboio da madrugada e «tão inverosímil parecia, que a principio ninguém acreditou», escrevia o correspondente de Lagoa de «O Século», numa notícia datada de 3 de Fevereiro, para logo acrescentar, «infelizmente, mais tarde um telegramma official veiu confirmal-a».

A novidade produziu naquela vila «a maior consternação. Todos os habitantes unanimemente lamentam a perda das pessoas reaes». A comissão administrativa da Câmara local, presidida pelo comendador Teófilo Trindade, reuniu-se extraordinariamente, na presença do administrador do concelho e de muitas outras pessoas.

Na sessão, o presidente lamentou o trágico acontecimento, «tendo palavras repassadas do mais profundo sentimento para com as victimas”, encerrando-se de seguida a reunião em sinal de luto. Mais referia o correspondente que «á noite “o Seculo” era arrebatado das mãos do vendedor, pois todos queriam saber pormenores». Situação semelhante ocorreu em Castro Marim com o mesmo jornal.

Na Veneza algarvia, «a noticia do attentado tem sido o assumpto do dia, havendo grande anciedade de noticias», publicou «O Século». Ao meio dia do dia 2, chegava à cidade de Tavira a confirmação oficial, via comandante do batalhão e administrador do concelho.

Por sua vez, em São Brás de Alportel e segundo o «Diário de Notícias», o boato do regicídio surgiu «na manhã de domingo primeiro dia de feira», causando «enorme sensação quando foi confirmado», sendo «geral o sentimento».

Em Alcoutim e de acordo com «O Século», «causou geral consternação a noticia dos assassínios de sua magestade e alteza». Por sua vez, em Vila Real de Santo António «deixou toda a gente surprehendida a noticia do assassínio de el-rei e do príncipe». A 3 de Fevereiro as repartições públicas, consulados e fábricas tinham «as bandeiras a meia haste, assim como todos os barcos surtos no Guadiana».

Em Olhão, «a horrorosa tragédia de Lisboa, causou (…) a mais profunda impressão, lamentando todos o fim desgraçado de el-rei e do príncipe real».

Na capital do Algarve, celebrou-se no dia 5, «na Sé uma missa de Requiem, por iniciativa do cabido, suffragando as almas do soberano e do príncipe. Foi grande a concorrência de senhoras e cavalheiros de todas as classes sociaes». Por esses dias, também em Castro Marim se orou pelos soberanos, «tem sido geral o sentimento pela tragédia de que foram victimas el-rei D. Carlos e o príncipe real. Já teem sido rezadas missas por alma dos régios finados».

A barlavento, mais concretamente em Lagos, de acordo com o DN, «causou grande consternação n’esta cidade e povos próximos a noticia do attentado de que foram victimas sua magestade el-rei e o príncipe real». No dia dos funerais reais «a fortaleza da Ponta da bandeira salvou de meia em meia hora. Ao por do sol içou a bandeira, dando a salva de 21 tiros». A esquadra inglesa que se encontrava surta na baía «conservou durante o dia as vergas e bandeiras em funeral, salvando o cruzador Drake, como navio chefe, de meia em meia hora».

Similarmente, no dia 8, mas em Monchique, de acordo com «O Século», realizaram-se na igreja matriz «solemnes exéquias por alma de sua magestade el-rei D. Carlos e de sua alteza o príncipe real D. Luiz Filippe. Oficiou o digno prior d’esta freguezia, acompanhado de todos os sacerdotes do concelho».

Cerimónia a que acorreram os monchiquenses, «vimos ali tudo quanto há de mais distinto nesta villa. Achavam-se largamente representadas todas as corporações, taes como câmara municipal, corpo judicial, meza da Misericordia e varias irmandades, além de muitas senhoras e de grande quantidade de povo». A consternação era geral.

Os lagoenses também rezaram, mas a 14 de fevereiro, tendo decorrido nas «egrejas de S. José e parochial de Nossa Senhora da Luz, d’esta villa, missas suffragando as almas d’el –rei D. Carlos I e do principe D. Luiz Filippe, a que assistiram as pessoas de maior representação e muito povo, estando as egrejas repletas». Duas semanas após o assassinato ainda não se havia ali «dissipado a profunda impressão causada pelo attentado do dia 1».

Se as autoridades eclesiásticas confortavam os algarvios, as autoridades administrativas também não ficaram indiferentes ao infausto acontecimento.

Em Budens, a Comissão Paroquial, em sessão extraordinária de 9 de fevereiro, «deliberou lançar na acta um voto de sentimento pelo attentado de que foram victimas sua magestade o senhor D. Carlos e o senhor D. Luiz Filippe», além de mandar celebrar a 15 de Fevereiro «uma missa, para a qual o presidente convidou todos os seus parochianos». Presidente que em nome da comissão «telegraphou ao vedor de serviço no paço, enviando condolências a sua magestade el-rei e família real».

No dia seguinte, foi a comissão administrativa da Câmara de Castro Marim que consignou, em reunião extraordinária, «um voto de profundo sentimento pela infausta morte de el-rei D. Carlos e de sua alteza real D. Luiz Filippe, enviando no mesmo acto a sua magestade el-rei e familia real portugueza, um telegrama expressando os seus sentidos pezames e protestando contra o attentado, encerrando em seguida a sessão em signal de luto».

Por sua vez, a 19 de fevereiro, mas em Albufeira, «a câmara municipal enviou a el-rei D. Manuel um telegramma de pezames pela morte de el-rei D. Carlos e do príncipe real».

D. Carlos não era um monarca desconhecido dos algarvios, afinal, depois da visita régia de D. Sebastião ao Algarve em 1573, nenhum outro rei logrou percorrer a região nos 373 anos seguintes. Em Outubro 1897, D. Carlos e a rainha D. Amélia empreenderam uma visita oficial ao Algarve, realizando posteriormente visitas de carácter particular, por exemplo, a Albufeira ou Lagos, entre outras localidades, no âmbito de pesquisas oceanográficas.

O assassinato do rei e do príncipe chocou uma grande parte dos portugueses e fez eco por toda a Europa, horrorizada pelo crime.

Nos dias seguintes ao atentado, foram centenas de pessoas as que se deslocaram à morgue, prestando homenagem aos regicidas, para depois milhares acorreram às suas campas, juncando-as de flores.

O rei, um apaixonado pelas ciências e um artista, e o primogénito, pagaram com a vida um regime paralisado, que não trazia progressos às classes mais desfavorecidas. Portugal era mesmo uma das nações mais atrasados da Europa, um país rural com uma indústria muito incipiente e onde o analfabetismo rondava os 75 % em 1910. No Algarve a cifra atingia os 82 %.

D. Manuel II foi aclamado chefe de Estado em maio de 1908, contudo o seu reinado foi breve. A 5 de outubro de 1910, a República era proclamada no país, e os algarvios receberam-na festivamente.

Nas palavras do messinense António Neves Anacleto, era «opinião geral que os “ladrões das finanças, da justiça, das coimas e das côngruas” pagariam todos os seus malefícios. (…) A Nação inteira aceitava esperançosamente a Revolução, mais pela agonia do passado do que pela consciência do futuro».

O crime do regicídio constituiu mais um capítulo do estertor da Monarquia Constitucional, rumo a uma República, que se queria de igualdade, fraternidade e liberdade.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação

Nota: Nas transcrições respeitou-se a ortografia da época.

 

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