Quando portugueses e os algarvios, em particular, gritaram em uníssono “Morra!” à Inglaterra

O Reino Unido é, desde há várias décadas, o principal mercado emissor de turistas para o Algarve e a relação […]

O Reino Unido é, desde há várias décadas, o principal mercado emissor de turistas para o Algarve e a relação dos algarvios com os ingleses é salutar e profícua. Mas se, pelo menos desde 1960, as relações entre os dois povos são de cordialidade, em Janeiro de 1890 foram tumultuosas, de indignação e repulsa. Façamos então uma viagem no tempo até esses dias impetuosos em Portugal, e no Algarve, em particular.

O final do século XIX ficou marcado por uma corrida dos países europeus para África. O continente africano tornou-se então muito apetecível, não só como potencial de mercado, como enquanto território fornecedor de matérias primas.

Portugal já ali ocupava territórios desde o século XV, porém a sua presença era modesta e ocorria principalmente junto ao litoral.

Não obstante, face ao interesse das potências europeias, os portugueses, com o argumento da sua presença secular, reivindicavam direitos acima de quaisquer outros países, o que para um país de pequenas dimensões, sem poder económico e militar, se revelaria quase impossível.

Mapa Cor de Rosa

É neste contexto que surgem as expedições militares de reconhecimento do interior de Angola e Moçambique, protagonizadas por Alexandre Serpa Pinto, Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens, nas décadas de 1870 e 1880. Portugal tentava, assim, ocupar efetivamente aqueles territórios, agora tão ambicionados pelos seus vizinhos europeus.

A expedição de Capelo e Ivens de Angola à contracosta, ou seja a Moçambique, em 1884/85, justamente quando, na Alemanha, na Conferência de Berlim, se discutia a questão dos rios africanos (a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger), motivou a pretensão portuguesa de estender o seu domínio a esse vasto território interior, entre as duas colónias.

A aspiração seria assinalada a rosa numa carta que ficaria para a história como o «Mapa Cor de Rosa». Portugal procurou apoios internacionais e obteve-os junto da França e da Alemanha, contudo, relativamente à Inglaterra, a velha aliada (desde o Tratado de Windsor, em 1386), a oposição foi total.

É que a pretensão lusa colidia com os interesses britânicos, nomeadamente a construção de uma linha de caminho de ferro entre o Cairo (Egito) e a Cidade do Cabo (África do Sul), ou, e principalmente, a exploração aurífera na área que os portugueses queriam ocupar, por empresas de mineração inglesa já a laborar na África do Sul. Interesses que malogravam a anuência do governo da Rainha Vitória às aspirações de Portugal.

A presença portuguesa em Angola e Moçambique no séc. XIX. (Fonte www.africafederation.net)

A contenda arrastou-se e viria a conhecer o desfecho no dia 11 de Janeiro de 1890, fez há poucos dias 128 anos. Foi quando, falhada a via diplomática, o Governo Português recebeu um memorando do homólogo britânico, que exigia que as forças militares portuguesas, comandadas por Serpa Pinto, abandonassem de imediato os países que vinham a ocupar, Chire, Makokolos e Mashonas (atualmente parte do Zimbabwe e Malawi).

O episódio ficaria conhecido como “Ultimato” e, caso Portugal não anuísse, até à tarde daquele dia, o embaixador britânico deixaria de imediato o país.

Com a ameaça do corte de relações diplomáticas, o governo português cedeu, não arriscando uma ofensiva sobre Lisboa.

Contudo, a reação popular à condescendência do governo e do rei D. Carlos, aos interesses ingleses, foi de inflamada reprovação.

Um pouco por todo o lado, nas grandes cidades, mas também em vilas e aldeias, a população saiu massivamente às ruas, insurgindo-se contra a capitulação de Portugal.

O jornal republicano “O Século”, na edição de 14 de Janeiro de 1890, titulava o assunto como “A grande affronta nacional” e manchetes de teor semelhante repetiram-se nos dias seguintes, tendo sido transversais a toda a imprensa. Esta era sustentada numa vasta rede de correspondentes, que, através do telégrafo, faziam chegar às redações em Lisboa as notícias de cada localidade, imprensa que beneficiava depois de uma ampla e rápida difusão através da ferrovia, galvanizando os leitores em todo o país.

O assunto foi também uma oportunidade para os adeptos dos ideais republicanos, que não o descuraram.

Apoiados no já citado jornal “O Século”, procuraremos descrever a reação dos algarvios ao Ultimato. Assim, as primeiras notícias oriundas da região surgiram na edição de 17 de Janeiro e prolongaram-se até 24 do mesmo mês.

Loulé teve a primazia, enquanto Tavira foi a derradeira. Nesta sequência, informava o correspondente louletano que, no dia 15, cerca de 500 pessoas haviam calcorreado as ruas de Loulé, “dando vivas a Portugal, a Serpa Pinto, á marinha portugueza e á República, e morras á Inglaterra”.

Dois dias depois, mantinham-se as manifestações na vila, com “grande quantidade de povo”, enquanto todo o comércio se encontrava encerrado. A 18 de janeiro os manifestantes, estimados em aproximadamente 3000, acompanhados de filarmónicas, voltaram a percorrer as ruas “contra a pirataria ingleza”. Mais informava o correspondente que o Centro Republicano local havia levantado os mais vivos protestos, condenando ainda os regimes que se impunham ao progresso.

Na antiga capital do Algarve, Silves, mais de 2000 pessoas, “sem distinção de cores politicas”, reuniram-se em assembleia, a 17 de Janeiro, na qual “resolveram manifestar ao paiz os seus sentimentos do mais arreigado patriotismo, ferido agora pela violenta expoliação da Inglaterra”.

Após a reunião, vários grupos acompanhados da bandeira nacional, coberta de crepe (em sinal de luto), prosseguiram pelas artérias da cidade, dando vivas patrióticos, a Portugal, a Serpa Pinto, classe académica e à imprensa, num ambiente de “enthusiasmo indescriptivel”.

No mesmo dia, mas em Faro, a Academia e todas as classes sociais, estimadas em mais de 2000 pessoas, percorreram as ruas, “em imponentes manifestações patrióticas. Vivas a Serpa Pinto e a todas as nações honradas!”.

Houve ainda discursos calorosos e ânimos exaltados, patentes num “ardente desejo de vingança contra os usurpadores da nação”.

Já na noite anterior, a Academia, “seguida de enorme multidão de populares”, havia percorrido as artérias farenses, em “ruidosas manifestações contra a Inglaterra” e vitoriando Serpa Pinto. No arruamento do vice consulado inglês, o cortejo “rompeu em atroadores brados de indignação contra aquelle paiz e vivas a Portugal”.

Mais à frente e junto ao representante diplomático francês e em simultâneo redator do periódico local “Districto de Faro”, foram levantadas prolongadas ovações à imprensa e à França. Ao que o vice cônsul agradeceu, saudando Portugal e a sua independência, os brios patrióticos e em “geral todos os homens do futuro, com que este heroico paiz conta para realisar o seu vehemente desejo de reivindicação nacional”.

Na capital de distrito, houve mesmo uma comissão “iniciadora da manifestação popular”, presidida por Veríssimo Manuel Martins, e de que eram membros Joaquim Corrêa Telmo, Joaquim Cruz, José Estêvão e José Maria Belmarço.

A 19 de Janeiro, era a vez de Estoi se insurgir contra os ingleses, tendo a Academia Farense ali se deslocado para esse fim. Dois alunos naturais daquela aldeia, do concelho de Faro, “fizeram comprehender ao povo” a propaganda contra a Inglaterra.

O pároco local associou-se à contestação, tendo discursado energicamente contra aquele país. Houve ainda as habituais saudações a Serpa Pinto, à pátria e as vaias: “Abaixo a selvajaria ingleza! Abaixo o commercio inglez”.

Também no mesmo dia, mas em São Bartolomeu de Messines, 500 manifestantes percorreram a aldeia, com a “bandeira portugueza desfraldada, dando enthusiasticos vivas á nação portugueza, a Serpa Pinto, ao exercito e á marinha portugueza”. Em simultâneo, foi aberta uma subscrição pública, cujo rendimento deveria reverter para a defesa do porto de Lisboa.

À noite, foram os olhanenses que demonstraram os seus sentimentos patrióticos: “talvez 2000 pessoas de todas as classes percorreram a villa, com a bandeira nacional à frente, levada por um aspirante da marinha; seguia-se musica e o povo dando vivas à pátria, à independência e vozes de abaixo a Inglaterra”. Informava ainda o correspondente que o consulado espanhol havia hasteado a bandeira, bem como uma fábrica francesa.

Na manhã de 20 de Janeiro, foi a vez de os lacobrigenses protestarem, numa “grande manifestação patriótica”, promovida pelo Montepio Artístico. Mais de 2000 pessoas andaram pelas ruas de Lagos, gritando vivas à pátria, Serpa Pinto, à marinha portuguesa e à raça latina.

Em Monchique, a população, em grande número e com grande entusiasmo, reuniu-se nas salas da Câmara, a 21 de Janeiro, tendo a edilidade deliberado “protestar inergicamente contra o insólito e selvagem proceder do governo inglez”. Foi ainda nomeada uma comissão para angariar donativos para “augmento da subscrição nacional”.

No dia seguinte, ocorreram manifestações em Castro Marim e Tavira. No primeiro caso, os castromarinenses promoveram uma “importantíssima manifestação”. Uma filarmónica percorreu a vila tocando o hino da Restauração, acompanhada das palavras de ordem usuais, vivas a Serpa Pinto, à raça latina e à independência nacional. Enquanto isso, encontravam-se “todas as janelas e varandas repletas de patriotas”.

Por sua vez, em Tavira, cerca de 3000 pessoas percorreram a cidade, numa marcha aux flambeaux, na qual seguia na dianteira o estandarte nacional. À janela da Câmara, onde os vereadores estavam reunidos, discursou Luís Quadros.

Junto à residência do cônsul espanhol houve entusiásticas ovações à Espanha, à França e à Itália. Aquele representante diplomático agradeceu e levantou vivas a Portugal. O comércio encerrou e “apezar da noite chuvosa, viam-se as janellas repletas de senhoras, que acompanhavam a manifestação, dando vivas e acenando com lenços”. Foram feitas aclamações à pátria, a Serpa Pinto, à marinha, ao exército e morras aos piratas, reinando “contentamento geral”.

Os algarvios já não guardam reminiscências destes protestos, mas, por entre ruas das vilas e cidades da região, é ainda frequente encontrarmos o topónimo “Serpa Pinto”, atribuído naquele conturbado ano.

A reação ao Ultimato constituiu a primeira manifestação ideológica coletiva da sociedade portuguesa e dela não se alhearam os nossos bisavôs. Quanto aos ingleses, o acordo, ainda que com alguma polémica, acabaria por ser estabelecido em 1891 e com ele começaram a delimitar-se as fronteiras de Angola e Moçambique que chegaram aos nossos dias.

Mas a cedência de Portugal às pretensões dos ingleses marcou o início da queda do prestígio da monarquia e de D. Carlos, em contraponto com a campanha republicana, que muito frutificará no Algarve, e que irá conduzir à proclamação da República em Portugal, vinte anos depois.

Mas isso era ainda futuro. Por agora, em Janeiro de 1890, os ingleses eram os usurpadores da nação e, por conseguinte, do Algarve também.

 

Aurélio Nuno Cabrita

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação

 

Para saber mais:
– Jornal “O Século”, janeiro de 1890;
– “História – Jornal de Notícias”, nº 8, junho de 2017.

 

Nota: Nas transcrições respeitou-se a ortografia da época

 

 

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