Crónica de um Inverno Perfeito: Snowboard na primeira pessoa

João Saraiva, biólogo e investigador do Centro de Ciências do Mar do Algarve, já partiu para os Alpes austríacos (o […]

Steve Gruber, João Saraiva, Chris Kröll e Friedl KolarJoão Saraiva, biólogo e investigador do Centro de Ciências do Mar do Algarve, já partiu para os Alpes austríacos (o Tirol), onde pretende passar «Um Inverno Perfeito» a conhecer a montanha e a praticar desportos de inverno.

O aventureiro algarvio continua a partilhar as suas deambulações com os leitores do Sul Informação. Desta vez, João Saraiva conta como encontrou um “algarvio” no meio das montanhas, que é, igualmente, uma lenda do mundo do Snowboard e revela-nos a conversa que com ele manteve. Este é o quinto episódio desta história, depois das crónicas «Agosto», «O Jantar Alpino», «Ar e Estilo» e «A Passagem».

 

Snowboard na primeira pessoa

Friedl KolarNuma das descidas deste inverno perfeito, tive a oportunidade de reencontrar alguém que foi um dos snowboarders mais influentes da Áustria e membro de um dos colectivos mais importantes da Europa no que diz respeito à cultura do snowboard. Foi top mundial, viajou pelo todo globo à procura do Inverno Perfeito e influenciou uma geração inteira de praticantes, seja como rider seja através da marca que ajudou a fundar e a crescer, a Äesthetiker.

Recentemente desenvolveu um projeto inovador no ensino do snowboard – a Shredschool – que podem conhecer melhor nesta entrevista.

Apesar disso, tem uma relação muito forte com o Algarve. Uma das suas residências é Aljezur, onde passou os últimos 18 Verões e onde diz que quer vir a viver a tempo inteiro.

Recebeu-me na sua casa nos Alpes e, entre cervejas, risos e filmes de snowboard, acedeu, com a humildade que o caracteriza, em dar esta entrevista ao Sul Informação.

Senhoras e senhores, eis Friedl Kolar:

João Saraiva/Sul Informação – Como é que um grupo de amigos se torna numa marca tão influente como a Äesthetiker?

Friedl Kolar – Para isso temos que recuar até 95 ou 96, numa altura em que o snowboard não era de todo popular, embora houvesse já uma plataforma que era a ISF (International Snowboarding Federation, que viria a tornar-se a World Snowboarding Federation em 2002). Havia [no glaciar de Hintertux, no Tirol] um pequeno grupo de praticantes que estava realmente motivado para entrar no campeonato do mundo, e foi aí que conheci o Steve (Gruber), Dieter (Steinhardt), Bernd (Egger), Beckna (Eberharter), Woll (Nyvelt), todos esses estavam sempre por ali. E éramos os únicos! Quando nos conhecemos foi ‘uau, um snowboarder’, era amizade instantânea.

Eu e o Steve não vivíamos nos Alpes – Viena é a 3 horas e meia daqui e a minha terra (Villach) também. Mas aqui tinhamos o glaciar, que tem 365 dias por ano de oportunidade para fazer snowboard. Pensámos assim ‘Ei, este sítio é muito bom, vamos juntar-nos e ficar por aqui’. A Äesthetiker partiu assim de um grupo de viajantes e tornou-se uma empresa, uma marca, um clube ou seja lá o que for que ela é hoje em dia (risos).

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J.S./Suli – Isto foi então no fim dos anos 90…

F.K. – Não, pelo final dos 90 já éramos profissionais. Tínhamos perto de 20 anos – eu tornei-me pro quando tinha 18 anos. Aliás, eu tornei-me profissional quando saí de casa e não tinha dinheiro, e percebi que competir nos campeonatos era uma maneira de ganhar algum. Para dizer a verdade foi isso que me levou aos melhores lugares para fazer snowboard, porque depois dos campeonatos os halfpipes perfeitos ficavam lá durante uns dias, em Hintertux, em Laax (na Suiça)… Nós, basicamente, ou íamos mais cedo ou ficávamos mais dias. E de repente dei por mim a conviver com as lendas do desporto como o Terje Haakonsen – é como se fosse surfista e estivesse a surfar com Kelly Slater! De facto, nós não éramos maus de todo e não demorou muito tempo até que fôssemos notados pelos tops da altura. Nós éramos nerds do snowboard: Gostávamos, comíamos, vivíamos essa cultura! Acho que éramos mesmo, mesmo motivados, não era uma questão de se se podia fazer, era apenas: vamos fazê-lo, sabes?

J.S./Suli – E de repente vocês aperceberam-se que eram profissionais. Foi fácil manter esse modo de vida?

F.K. – No início, quando recebia uma prancha grátis ficava contente durante um ano! Até chegava a falar com os meus pais todo orgulhoso: “Olhem, agora sou profissional, recebo material de graça”. E eles diziam-me “tens um snowboard e pensas que isso vale muito? É melhor ires estudar…”.

Mas com os campeonatos fazia-se algum dinheiro. Aos 17 anos fazia cerca de 5000 euros por ano só com os prize-money e era espetacular! Claro que no mundo real 5000 euros não é nada, mas com os bons resultados vieram os patrocinadores. Na altura estava sempre no Top 10 em halfpipe a nível mundial, e foi por isso que algumas marcas começaram a pagar.

J.S./Suli – Num país com tanta tradição de ski como a Áustria, como foi a relação com mundo do ski?

F.K. – Na realidade nós ríamo-nos dos esquiadores. Nessa altura nós éramos os skaters e snowboarders, éramos os mais cool! Hoje em dia isso já não acontece tanto e vês até grupos de esquiadores e snowboarders a andarem juntos, mas naquele tempo simplesmente não era possível. Talvez como os surfistas e bodyboarders, hoje em dia é normal irem para a água juntos mas antigamente não acontecia. A nível de apoios, a nossa geração nunca teve qualquer apoio do país. Por exemplo, quando estava no topo da minha carreira fui obrigado a ir para a tropa por 9 meses. Sem ajuda, sem apoio do estado para continuar a competir, porque o ski era grande mas o snowboard nem estava no radar, especialmente na Áustria.

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J.S./Suli – Vocês têm o projeto Shredschool, onde oferecem aulas gratuitas todas as semanas. Como é que um snowboarder profissional, e sabendo que muitas vezes os pros são conotados com alguma distância para com os iniciantes, se dedica a ensinar?

F.K. – Eu por acaso acho que nunca tive essa atitude, e penso que quanto melhor for um atleta mais deve deixar a sua performance falar. Eu tentei várias outras coisas relacionadas com o snowboard, como filmar e editar vídeos, mas sempre gostei de ensinar. Acho que sou sociável e gosto de estar com pessoas, e por isso pensei que tornar-me professor podia ser uma opção para o futuro, já que o snowboard não vai sustentar-me para o resto da vida… Talvez para alguns, como o Shaun White, mas são muito poucos.

Sendo assim, investi o meu dinheiro em ir estudar, primeiro à noite e depois para a universidade, para tirar Desporto. Era algo além do snowboard, para libertar a mente. Durante 2 anos trabalhei como professor e depois surgiu esta ideia: dar algo ao snowboard, levar as pessoas a fazer snowboard de uma maneira real. Sempre odiei quando alguém te tenta ensinar algo que ele não tem ideia do que está a fazer. Por outro lado, se por exemplo um profissional de hóquei me tenta ensinar algo, eu vou querer aprender (Friedl é jogador amador de hóquei no gelo). E assim, se um snowboarder profissional ensina um principiante ele vai certamente melhorar, porque ele tem as técnicas e as dicas de quem está por dentro.

Às vezes apenas ver o que ele está a fazer e a linha que está seguir ajuda muito. Há muita técnica envolvida – vocês no Algarve com o surf sabem disso, se não souberem fazer o bico de pato [manobra que permite passar a rebentação], nunca vão chegar às ondas. É essa técnica e essa vivência que tentamos dar às pessoas que vêm ter connosco. E não nos focamos apenas nas crianças mas também no pessoal mais velho, que por vezes precisa apenas de algumas dicas para usufruir muito mais do snowboard.

J.S./Suli – Por falar em surf, tens uma relação muito forte e já bem longa com o surf e com o Algarve. Como é que isso surgiu?

F.K. – Sendo muito franco, o Algarve é um dos locais mais bonitos do mundo, e olha que eu já viajei bastante. É sempre aquele local para onde eu quero voltar, aquele sítio onde posso estar na praia o dia todo sem me queimar demais, por causa da nortada fresca, e, especialmente no Verão, quando não há ondas em lugar nenhum, há sempre ondas no Algarve. Eu não preciso de ondas perfeitas, só me quero divertir. Tal como tu queres vir para neve no Inverno, eu quero ir surfar no Verão. E eu vou, todos os dias, tento passar o maior tempo possível na água.

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J.S./Suli – Agora que estás bem dentro dos trintas, achas que tens uma relação diferente com a montanha? Olhas para a montanha de outra forma, tentas passar mais tempo fora das rampas e do snowpark e mais nas encostas virgens? Ou isso sempre esteve presente?

F.K. – Sempre que as câmaras se desligavam (na época de competição), eu ia para a neve virgem e fazer snowboard apenas para mim. Mas já não preciso de saltar penhascos com 20 metros de altura, acho que mais ou menos 8 metros é um bom voo e não corro grandes riscos de me magoar. Continuo a gostar de carregar no acelerador, ir para fora das estâncias, para a neve virgem, mas desde que estejam boas condições. Já não vou quando há pouca neve ou má visibilidade, aí fico em casa.

J.S./Suli – Queres deixar alguma mensagem para quem nos lê, principalmente para aqueles que gostam da montanha e do snowboard?
F.K. – Se gostas realmente de alguma coisa, então tens que te comprometer a fazê-la. Senão vais arrepender-te. Se estiveres em Portugal e quiseres mesmo ir para os Alpes, há sempre maneiras de vir, há empregos, há formas de ficar e aproveitar o Inverno. Tal como nós fazemos a surfar pelo mundo fora, às vezes só precisas de dar esse passo. Não é assim tão longe, estamos todos na Europa. Eu vou de carro todos os verões para Portugal, são 3 dias de uma viagem espetacular. Vocês podem fazê-lo também para cá!

Friedl Kolar tem 37 anos e é ex-pro de snowboard, professor, treinador e designer de snowparks. Começou a fazer snowboard em 1990. Afirma-se como um boardrider (skate, surf e snowboard), que tenta praticar todos os dias e espalhar a paixão por estas modalidades. É patrocinado por Westbeach, Blue Tomato, Oakley, Vans, Level, Ästhetiker, Chill&Surf Aljezur.

João Saraiva tem 38 anos, é biólogo de formação e trabalha há anos como investigador, no CCMar.
É, igualmente, um apaixonado por desportos radicais, sendo praticante de surf e snowboard.
É radialista e colaborador de longa data da Rádio Universitária do Algarve RUA FM, onde dinamiza programas de divulgação científica e de música.
E não é só na rádio que João Saraiva dá a ouvir música, mas também na “pele” de DJ Sir Aiva, em bares, discotecas e eventos.

Veja as fotos de Friedl Kolar:

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