O vírus da indiferença

Dizer que a realidade ultrapassa a ficção é daquelas frases estafadas, que utilizamos quando o que se passa à nossa […]

Dizer que a realidade ultrapassa a ficção é daquelas frases estafadas, que utilizamos quando o que se passa à nossa volta nos atropela pela imprevisibilidade, velocidade ou estranheza dos acontecimentos.

Estas duas últimas semanas foram pródigas na sucessão vertiginosa de casos, notícias e factos, em Portugal e no mundo, que em tudo demonstram como, por mais estafada que seja a frase, consegue ficar aquém do significado que lhe atribuímos. Esta será, por isso, uma crónica da omissão, em que o que não está escrito não deixará de estar presente.

Há duas semanas, o fenómeno de uma eventual epidemia do Ébola dominava os horários nobres de todos os noticiários e ofuscava a crescente onda de indignação que varria a população mexicana com o desaparecimento de 43 jovens estudantes, alegadamente às mãos de um dos cartéis da droga que suportava o alcaide da pequena cidade de Iguala.

Num artigo publicado no site www.africasacountry.com, em 14 de novembro, Santiago Solorzano chama a atenção para o que denomina «o mortífero vírus da indiferença», que, segundo ele, há muito tinha infetado a sociedade mexicana e que rapidamente se propagaria pelo mundo.

Apesar da onda de indignação mundial gerada pelos 13.000 casos registados de contágio pelo Ébola, dos quais, até aquela data, “apenas” 4.920 haviam resultado em óbitos, este novo vírus provocava, no México, a total indiferença face ao aumento da violência.

No período entre Dezembro de 2012 e Julho de 2014, foram registados 53.899 homicídios, sobre os quais os meios de comunicação nacionais e internacionais pouco comentavam.

No mesmo dia, o site do New York Times publica um artigo de Kirk Semple com o relato de uma jovem de 15 anos que conseguiu fugir ao cativeiro dos jihadistas. O mesmo artigo revela que o auto-denominado Estado Islâmico poderá já ter raptado entre 5.000 a 7.000 yazidis (membros de uma comunidade étnico-religiosa curda), a maioria dos quais jovens raparigas cujo futuro passará pela tortura, abuso sexual e escravidão, situação que, segundo um relatório da Human Rights Watch, poderá já configurar um caso de crimes contra a humanidade, mas sobre o qual pouco mais sabemos.

É como se existisse um mercado de cotação da vida e da morte. Qualquer morte ou ameaça à vida do mundo ocidental e “civilizado” tem mais valor – logo mais impacto – do que a morte ou a violência em qualquer outro ponto do globo. Ainda que seja num país vizinho a poucos quilómetros de distância.

Daqui de onde estamos, é muito fácil esquecermo-nos que o sítio onde nascemos é um verdadeiro jogo da roleta russa.

Poderia ainda debruçar-me sobre as mediáticas detenções que parecem ter atingido o coração do regime, mas, sobre essas, não faltarão opiniões, comentários e teorias.

 

Autora: Anabela Afonso é licenciada em Relações Internacionais e mestre em Comunicação, Cultura e Artes, variante Teatro

 

 

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