Quando um gene vale por dois

Um grupo de cientistas liderado por Paula Duque, do Instituto Gulbenkian de Ciência, descobriu um gene que tem a particularidade […]

Um grupo de cientistas liderado por Paula Duque, do Instituto Gulbenkian de Ciência, descobriu um gene que tem a particularidade de produzir duas proteínas diferentes com localização e funções completamente distintas numa planta modelo.

A noção de que cada gene codifica apenas uma proteína começou a ser questionada há alguns anos. No entanto, as consequências biológicas de os genes codificarem mais do que uma proteína são ainda largamente desconhecidas.

Agora, num estudo publicado no número mais recente da revista “The Plant Cell”*, um grupo de cientistas liderado por Paula Duque, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC, Portugal), descobriu um gene – ZIFL1 – que tem a particularidade de produzir duas proteínas diferentes com localização e funções completamente distintas na planta.

Os investigadores observaram que, na raiz, o ZIFL1 codifica uma proteína que é importante para o transporte de auxina, uma hormona essencial ao correto crescimento e desenvolvimento da planta. Contudo, nas folhas, o mesmo gene origina uma proteína que confere tolerância à seca. O gene apresentado neste estudo é um dos poucos identificados capaz de produzir duas proteínas com papéis biológicos tão diferentes.

O ZIFL1 pertence a uma família de genes de transportadores que existe em todas as classes de organismos, embora se desconheça a função da maior parte dos seus membros. Sabe-se, porém, que estes genes de transportadores codificam proteínas que estão integradas nas membranas das células e atuam permitindo a passagem de pequenas moléculas através delas.

Usando estudos genéticos e de biologia celular na planta modelo Arabidopsis thaliana, a equipa de Paula Duque pôde estudar o papel do gene ZIFL1. Os investigadores ficaram surpreendidos ao descobrir que plantas mutantes incapazes de produzir o transportador ZIFL1 apresentavam defeitos específicos em diferentes órgãos e funções.

Por um lado, as suas raízes tinham problemas de crescimento, ramificação e orientação quando comparadas com plantas normais, o que sugeria o envolvimento do gene ZIFL1 no transporte da auxina, uma hormona importante para o desenvolvimento da raiz. Mas os investigadores descobriram também que as plantas mutantes tinham problemas em resistir à escassez de água.

Observaram que os poros das folhas que regulam a transpiração – os estomas – estavam mais abertos nos mutantes do que nas plantas normais, resultando numa maior perda de água. Isto sugeria que o gene ZIFL1 também desempenhava um papel no fecho dos estomas e no controlo das perdas de água pela planta, o que pode ser crítico em condições de seca.

Intrigados com estas observações, os cientistas investigaram se o gene ZIFL1 poderia originar duas proteínas diferentes que atuariam de modo distinto em diferentes tecidos. O splicing alternativo é um mecanismo chave que permite que um mesmo gene produza múltiplas proteínas.

Quando os genes são ativados para originar proteínas, dão origem primeiro a uma molécula intermédia de RNA que pode ser processada de diferentes formas, com remoção de algumas porções. Este processo de “corte e costura” pode originar diferentes moléculas de RNA que podem depois ser convertidas em diferentes proteínas.

Expressão do gene ZIFL1 na raiz (fluorescência verde, à esquerda) e nos estomas da folha (corante azul, à direita) em Arabidopsis thaliana. Créditos: Estelle Remy, IGC

Estelle Remy, investigadora no laboratório de Paula Duque e primeira autora deste trabalho, observou que no caso do gene ZIFL1, o splicing alternativo origina duas moléculas de RNA que apenas diferem em dois resíduos químicos. No entanto, esta pequena diferença tem grande impacto nas proteínas geradas, com uma delas a ser encurtada em 67 aminoácidos.

Em colaboração com o grupo de Isabel Sá-Correia no Instituto Superior Técnico, os investigadores testaram a atividade das duas proteínas em células de levedura e verificaram que ambas transportam iões de potássio.

Tendo as duas proteínas tamanho diferente mas atividade de transporte semelhante, Estelle procurou descobrir o que levava a que desempenhassem funções biológicas tão diferentes. Surpreendentemente, observou que os tecidos das raízes apresentavam apenas a forma longa da proteína, enquanto a forma curta estava presente somente nas folhas. Além disto, a localização destas duas proteínas divergia também dentro das células das raízes e das folhas, estando integradas em diferentes membranas celulares.

De acordo com Estelle, “o facto de não encontrarmos ambas as proteínas quer nas raízes quer nas folhas, sugere que estes tecidos contêm fatores específicos que, de algum modo, influenciam o splicing do RNA do ZIFL1 para produzir a forma que confere a função biológica necessária àquele tecido”.

Inflorescências de Arabidopsis thaliana

Diz Paula Duque: “tanto quanto sabemos, não existem muitos casos de proteínas codificadas pelo mesmo gene que tenham funções biológicas tão diferentes. O que é mais fascinante é como a inclusão ou remoção de apenas dois resíduos químicos na molécula de RNA resulta na produção de duas proteínas que desempenham papéis essenciais no transporte hormonal ou na tolerância à seca.”

O splicing alternativo é um mecanismo crucial para gerar diversidade proteica. Em humanos, cerca de 20 000 a 25 000 genes codificam proteínas. No entanto, estudos recentes indicam que mais de 90% destes genes sofrem splicing alternativo, estimando os cientistas que possam existir 500 000 ou mais proteínas diferentes no corpo humano.

Este estudo foi desenvolvido no IGC em colaboração com os grupos de investigação de Isabel Sá-Correia (Grupo de Ciências Biológicas do IBB/CEBQ, Instituto Superior Técnico, Portugal) e Jiří Friml (VIB/Ghent University, Bélgica e Institute of Science and Technology, Áustria). Foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal).

 

Autora: Ana Mena (Instituto Gulbenkian de Ciência)
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 

Referência do artigo:
*Remy, E., Cabrito, T.R., Baster, P., Batista, R.A., Teixeira, M.C., Friml, J., Sá-Correia, I., and Duque, P. (2013). A major facilitator superfamily transporter plays a dual role in polar auxin transport and drought stress tolerance in Arabidopsis. Plant Cell 10.1105/tpc.113.110353.

 

Informação suplementar:

RNA – O ácido ribonucleico (RNA ou ARN) é uma molécula que desempenha um papel vital em todos os organismos. Entre outras funções, está envolvida na transmissão da informação genética que dirige a síntese de proteínas. A sua composição química é semelhante à do DNA (ou ADN), sendo constituída por uma cadeia de resíduos químicos chamados nucleótidos, mas o RNA é geralmente de cadeia simples (enquanto o DNA é de cadeia dupla).

Arabidopsis thaliana (ou simplesmente Arabidopsis) é uma pequena planta nativa da Europa, Ásia e noroeste de África amplamente utilizada como organismo modelo em Biologia e Genética Vegetal. O seu genoma é um dos mais pequenos de entre as plantas que produzem flores e foi o primeiro genoma de uma planta a ser sequenciado.

 

 

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