1 milhão de erros por dia em cada célula do corpo humano e… apesar disso sobrevivemos!

Somos formados por 15 milhões de milhões de células que, ao longo de mais de 3000 milhões de anos de […]

Somos formados por 15 milhões de milhões de células que, ao longo de mais de 3000 milhões de anos de evolução se habituaram, não só a viver em conjunto, mas também a colaborarem para que possamos perpetuar a nossa espécie.

Este incrível processo de cooperação é assegurado porque no núcleo de cada uma destas células existe uma molécula, o ADN, que controla todos os processos que ocorrem no nosso corpo.

Esta molécula tem uma estrutura semelhante a uma escada de bombeiros mas, muito especial… pois, para além de estar torcida em hélice, tem mais de 3000 milhões de degraus, que constituem os chamados pares de bases azotadas (adenina – timina e citosina – guanina).

A dimensão destes números desafia a imaginação do mais criativo, impedindo que tenhamos a compreensão do que verdadeiramente significam… só recorrendo a alguns truques; se cada degrau fosse substituído por uma letra seria possível escrevermos 200 listas telefónicas.

Para que este ser complexo possa viver é necessário que, com alguma periodicidade, todas estas células se reproduzam. Isto implica a duplicação da molécula de ADN em cada célula, algo que, apesar da enorme dimensão da molécula, demora apenas algumas horas.

Embora este processo seja muito complexo e ainda esteja longe de estar totalmente compreendido, implica, numa primeira fase, a rutura dos “degraus” de uma forma semelhante à abertura de um fecho éclair; cada lado da escada afasta-se com metade dos degraus.

Numa fase seguinte, cada “meia escada” funciona como um molde que permite a reconstrução do modelo original, obtendo-se duas escadas iguais; cada uma destas novas moléculas de ADN vai constituir a central de comando de uma célula.

Embora desde os anos 70 se saiba que as lesões do ADN são muito frequentes, um trabalho publicado a 30 de novembro na prestigiada revista Science, pela equipa dirigida pela professora Maria Mañosas, do Centro de Investigación Biomédica en Red de Bioingeniería, Biomateriales y Nanomedicina (CIBER-BBN) da Universidade de Barcelona, lança novas luzes sobre este processo.

Com efeito, a ocorrência de cerca de 1 milhão de lesões por dia na molécula de ADN em cada célula, implica tentar perceber como, apesar disto, continua a ser possível a duplicação das células saudáveis; continuando a analogia com o fecho éclair, como é possível o fecho continuar a funcionar se muitos dos seus dentes estão danificados?

Embora já se soubesse da existência de diversos mecanismos que impediam que o processo de duplicação do ADN pare sempre que seja encontrada uma lesão (o que levaria inevitavelmente à morte da célula) o seu funcionamento era mal conhecido. As experiências realizadas por esta equipa da Universidade de Barcelona, permitiram compreender melhor o funcionamento de um destes mecanismos.

O estudo agora divulgado baseou-se na manipulação de moléculas individuais de ADN de sistemas virais, o que, ao contrário das técnicas tradicionais de bioquímica, permitiu estudar em tempo real a atuação de uma proteína do tipo helicasa denominada UvsW.

Quando uma lesão capaz de impedir a duplicação do ADN é encontrada numa das duas cadeias derivadas da molécula original, esta proteína permite que a informação perdida na cadeia danificada possa ser recuperada a partir da outra cadeia intacta, que funcionaria assim como uma cópia de segurança; este fenómeno designa-se estratégia de troca de molde.

Neste trabalho também se estudaram os mecanismos de regulação deste processo, assim como a velocidade de atuação da proteína UvsW, que é de 1.500 bases por segundo, uma das mais rápidas que se conhecem.

O grande interesse deste estudo deriva de que a correção das lesões de ADN é fundamental para o tratamento de várias doenças, pelo que a compreensão dos processos de recuperação natural poderá levar a avanços significativos na área da medicina, visto permitir atuar sobre proteínas que tenham funções semelhantes.

Por isso, a equipa da professora Mañosas trabalha atualmente com uma proteína humana denominada HARP, similar à UvsW, tendo um papel importante no processo de manutenção do genoma humano.

Tanto quanto se sabe, os distúrbios do funcionamento desta proteína estarão relacionados com diversos tipos de cancro; espera-se que os estudos em curso possam no futuro contribuir para a descoberta de mecanismos capazes de corrigirem os defeitos não só nos processos associados à HARP, mas também nos que utilizam outras proteínas.

 

Autor: Rui Dias

Professor de Geologia na Universidade de Évora

Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 

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