Triplo A para Algarve, Água e Agricultura

Agricultura/setor primário não só é fundamental para o Algarve alcançar a tão almejada diversificação da sua base económica, como também o é para a promoção de uma maior sustentabilidade, equilíbrio e coesão intra-regional

O percurso recente da agricultura algarvia tem sido inteiramente merecedor de registo. No espaço de uma década, o valor acrescentado bruto (VAB) gerado praticamente duplicou e representa mais de 9% do VAB sectorial nacional, apesar de realizado em somente 2,5% da superfície agrícola utilizada (SAU) de Portugal.

O produto agrícola bruto aumentou 5,4% em volume e 7,4% em valor ao ano durante este período e o rendimento do sector alcançou o melhor desempenho económico entre as várias NUTII, com taxas de crescimento médio de 9,4%/ano.

De acordo com os dados disponibilizados pelo INE nas “Contas Económicas da Agricultura Regionais”, a produtividade das explorações agrícolas localizadas na região do Algarve cresceu 5,4% na última década, reforçando a respetiva competitividade económica, muito assente nos ganhos de produtividade da terra e dos fatores intermédios e na eficiência no uso dos fatores (como a água), os mais elevados observados a nível nacional.

Trabalhando diariamente de lés a lés, as mulheres e homens do setor primário continuam a enfrentar alguma incompreensão/desconhecimento de parte da sociedade que se habituou a dar como adquirido ter alimentos à mesa com padrões de segurança/qualidade e a preços acessíveis, esquecendo-se que, para tal, alguém tem de cuidar de seres vivos, plantas e animais, em dias úteis, fins de semana e feriados, nos campos/estufas/pomares, cuja atividade não pode ser temporariamente suspensa quando uma qualquer disrupção de mercado ocorre, estando ainda submetidos aos riscos climatéricos e a ameaças sanitárias crescentes, num espaço de produção [UE] que é crescentemente exigente em matéria de ambiente e segurança alimentar, o que induz desafios acrescidos.

Paralelamente, têm de concorrer num mercado globalizado (sendo que a alimentação é cada vez mais também uma arma geopolítica, logo reavivando a discussão sobre limiares críticos de soberania alimentar e autossuficiência), em que exportamos, mas também importamos muito de geografias regidas por quadros regulatórios assaz diferentes, com padrões de exigência, incluindo ao nível de direitos sociais e laborais, e custos de produção inerentes, também muito distintos.

É obra… e com resultados palpáveis quando nos apercebemos do relevante contributo das nossas laranjas (e da sua IGP), das framboesas e outras frutas, das flores e plantas ornamentais, para o recorde de 2.300 milhões de euros de exportações nacionais em 2023.

Ou testemunhamos o percurso notável dos vinhos do Algarve não só em quantidade e qualidade, mas também para a valorização e notoriedade territorial propiciada pelo enoturismo, ou na diferenciação crescentemente reconhecida nos mercados mundiais da goma de alfarroba.

Acima de tudo, um caminho feito de trabalho: de qualificação e profissionalização por parte de um setor cada vez mais presente em grandes eventos do trade internacional, como a recentemente ocorrida Fruit Logistica em Berlim.

Se a isso juntarmos: o papel crucial de alguns tipos e modos de agricultura, pecuária e floresta, a par da transformação dos seus produtos, no combate ao despovoamento e no travar dos processos de desertificação em territórios fortemente debilitados, para a preservação dos agro-silvo-ecossistemas e paisagens tradicionais, prevenção de incêndios, regularização de ciclos hidrológicos, sequestro de carbono e inclusive contribuindo para enriquecer a oferta turística através da diferenciação via recursos endógenos ou para os objetivos de descarbonização da pegada associada ao sistema alimentar através do encurtamento dos circuitos de comercialização, tomamos consciência que a agricultura/setor primário não só é fundamental para a região do Algarve alcançar a tão almejada diversificação da sua base económica, como também o é para a promoção de uma maior sustentabilidade, equilíbrio e coesão intra-regional.

Em regiões como o Algarve, já de si historicamente atreitas a períodos de seca, o impacto das alterações climáticas veio intensificar de sobremaneira este problema: da seca meteorológica, evoluímos para um fenómeno de natureza tendencialmente hidrológica, que também deixou de ser episódico/conjuntural para assumir uma dimensão marcadamente estrutural.

Não só é consensual, como estatisticamente fundamentado, que: i) O Algarve atravessa uma seca já mais severa que a de 2005; ii) Enfrenta uma situação de escassez de água, com os níveis historicamente mais baixos de reservas nas albufeiras, apesar de, em 2009, ter sido inaugurada aquela que é a maior barragem do Algarve (Odelouca), comportamento também mimetizado nas águas subterrâneas; e iii) Dos dez anos mais secos de sempre, seis foram registados já depois de 2000 e nos últimos 20 anos assistiu-se a uma redução de 25% da precipitação média anual acumulada.

Mesmo que não levássemos em linha de conta que 1 hectare de regadio chega a produzir seis vezes mais que 1 hectare de sequeiro, a realidade hidrológica acima descrita cada vez dificulta mais. ou mesmo inviabiliza. a prática do sequeiro integral, pela ocorrência mais prolongada e frequente de períodos em que os teores de humidade no solo descem abaixo do Coeficiente de Emurchecimento Permanente, inviabilizando a extração de água do solo pelas raízes das plantas.

Até mesmo as novas instalações com variedades tradicionais de alfarrobeira ou amendoeira, só para citar estas espécies particularmente resilientes ao stress hídrico, hoje são-no maioritariamente através da modalidade de sequeiro ajudado, em que se disponibiliza artificialmente água à planta, pelo menos nos estádios iniciais.

A agricultura algarvia tem vindo, como atrás referido, a melhorar a sua performance económica sem que tal tenha sucedido à custa de uma expansão desenfreada do regadio.

Aliás, os dados do recenseamento agrícola mostram que, de 1999 para 2019, a superfície irrigada no Algarve reduziu-se em 4,4%, de 22.123 para 21.145 hectares.

Desde tempos imemoriais que a produção agrícola no Algarve convive com um clima exigente, de secas periódicas, forçando o engenho humano a estratégias de adaptação permanente que potenciem o aproveitamento/aprovisionamento e a gestão criteriosa da água para melhor enfrentar esses períodos de escassez.

Hoje, é prática corrente nas explorações agrícolas algarvias o apetrechamento com equipamentos de rega localizada e sensorização, comportamento corroborado pelos dados do INE, segundo os quais o esforço regional de investimento em tecnologia (nomeadamente na rega de precisão), conheceu uma variação de +3,5%/ano ao nível do montante por hectare de superfície agrícola cultivada.

Esse esforço assinalável na melhoria da eficiência no uso da água não se circunscreveu apenas às explorações agrícolas, mas igualmente ao regadio coletivo público.

Assim: o aproveitamento hidroagrícola (AH) do Sotavento, com uma área que ronda os 8.000 hectares e com 1,4 M€ de investimentos previstos/em execução no âmbito do PRR – PREH Algarve para reforço da redução de perdas de água, projeta uma eficiência de 98%; no AH Silves, Lagoa e Portimão, abrangendo uma área de 2.400 hectares, foram investidos até ao momento 17,5 M€ de fundos públicos do Plano Nacional de Regadios nas obras de modernização dos Blocos de rega de Silves e de Lagoa, com as quais foi possível obter uma redução de perdas de água de 3,6 milhões de m3/ano.

Com o alargamento da pressurização também ao Bloco de Portimão, que beneficiam de mais 7 M€ em verbas financiadas pelo PDR2020, prevê-se uma poupança adicional de +1 hm3 nos 400 hectares abrangidos por esta reabilitação.

Nestes dois aproveitamentos hidroagrícolas já estão implementados sistemas de tarifário escalonado para desincentivar/penalizar os consumos excessivos, estando em curso a operacionalização de avisos/recomendações de dotações de rega.

Razões que explicam o desempenho positivo da região do Algarve no que respeita ao uso da água pela agricultura: em 2019, segundo os dados inscritos no Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve (PREH Algarve), foi de 56,8% do total regional, consubstanciando uma redução para mais de metade face aos consumos registados no ano 2002 e comparando muito favoravelmente com os 75% a nível nacional e nos países europeus da bacia mediterrânica com climas similares ao nosso.

Aqui chegados, é factual que à data de hoje:

– A região do Algarve enfrenta uma situação no mínimo de alerta hidrológico, em que a oferta previsível de água já não é suficiente para satisfazer a procura projetada para a mesma, ceteris paribus.

Assim, resulta fundamental a definição de planos de contingência que melhorem a eficiência e permitam estender as disponibilidades hídricas ao máximo no tempo.

As medidas adotadas/a adotar devem ser transversais aos vários setores e utilizadores, defender e privilegiar as necessidades existentes em detrimento de novas que aportem pressão, proporcionais e equilibradas para que os sacrifícios não inviabilizem alguns, devendo ser periodicamente avaliadas e calibradas à luz da evolução do nível dos recursos hídricos.

Paralelamente, devem ser respaldadas por um programa de ação, como o recentemente apresentado pela CCDR Algarve I.P. em concertação com os representantes regionais e nacionais do setor agrícola, que preveja apoios para as empresas agrícolas e entidades gestoras dos AH e incentivos ao investimento, nomeadamente, em captações subterrâneas de resiliência aos sistemas nas zonas onde a condição do recurso o permita (aviso já aberto até 28 de fevereiro no âmbito do PDR2020), implantação de pequenas charcas e reservatórios, exploração de novas origens (dessalinizadoras portáteis, reutilização de águas residuais tratadas – ApR, aproveitamento da água da chuva intercetada pelas estufas para rega ou recarga de aquíferos, etc.), bem como para melhoria da eficiência e gestão inteligente da água em regadios privados e públicos.

– No âmbito do PRR, foi disponibilizado um envelope específico para a implementação do PREH Algarve, totalizando à data cerca de 240 M€, cuja execução, crítica e prioritária, terá impreterivelmente de estar concluída até 2026 e que, entre medidas do lado da procura (v.g. mais eficiência/melhor governança) e da oferta (novas origens / ApR e dessalinização, tomada de água no Pomarão), estima um input positivo de aprox. 70 milhões de m3 de água.

Neste contexto, destaque também para o projeto de modernização do AH Alvor, cujo fornecimento de água para rega a partir da barragem da Bravura vai para o 3º ano que está suspensa devido ao reduzido nível de armazenamento, e para o qual se estima um custo de empreitada de 14,5 M€ na pressurização de toda a rede primária de distribuição (reduzindo as perdas ao mínimo técnico) e transformando-o no primeiro regadio público nacional com 3 origens de água distintas: superficiais (barragem), furos coletivos e distribuição de ApR por redes separativas.

– Mesmo assim, existe a forte probabilidade, em face do expetável agudizar das consequências das alterações climáticas, que, apesar do acima identificado, esta Região continue excessivamente exposta à crescente imprevisibilidade da precipitação.

Recuperando o título deste artigo, para que o Algarve atinja o patamar AAA (num paralelismo com o rating de qualidade do crédito soberano), sinónimo de menor risco para os que cá vivem e investem ou para os que futuramente o queiram fazer, desde já temos, proativamente, de antecipar outros investimentos estruturantes dirigidos ao reforço da segurança/resiliência hídrica, sempre subordinados a uma análise custo-benefício criteriosa e ao balanceamento com os condicionalismos ambientais, entre os quais destaco: o reforço da capacidade de aprovisionamento com a construção de novas barragens, sendo que a da Foupana já conta inclusive com um financiamento de 0,5 M€ por parte do PDR2020, atribuído à Associação de Beneficiários do Plano de Rega do Sotavento do Algarve para a elaboração dos respetivos estudos prévios; as interligações Alqueva-Odeleite, a Sotavento, e Santa Clara–Bravura/Odelouca, a Barlavento, recorrendo neste último caso, se necessário, ao reforço na origem via dessalinização.

 

Autor: Pedro Valadas Monteiro, engenheiro e PhD, é vice presidente da CCDR Algarve IP

 

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