A povoação de Santo António de Arenilha, no lado português da foz do Rio Guadiana, já estava em franca decadência quando, a 1 de Novembro de 1755, foi varrida pelo maremoto que sucedeu ao grande terramoto desse dia.
Para substituir esta povoação, fundada em 1513 como um couto de homiziados e que era, segundo contou o historiador Fernando Pessanha ao Sul Informação, «um paraíso criminal no Algarve, onde tudo se traficava, até escravos, sendo frequentemente atacada pelo corso», sem pagar de nada disso impostos à coroa portuguesa, o Marquês de Pombal mandou erigir a atual Vila Real de Santo António.
«As casas de Arenilha eram construídas em colmo e madeira, numa zona de areia na foz do rio, por isso nada sobrou delas», conta ainda o historiador, que tanto tem investigado sobre esta parte sotaventina do Algarve.
Nada sobrou? Na realidade, há algo que sobrou, embora hoje esteja colocado a meia dúzia de quilómetros do local onde se ergueria Santo António de Arenilha.
Trata-se de uma pedra de altar, que foi identificada há poucos anos pelo historiador de arte Marco Sousa Santos na ermida de Santo António, no monte onde se situa o revelim com o mesmo nome, na povoação vizinha de Castro Marim.
Esta importante descoberta arqueológica, a que o Sul Informação já se tinha referido antes, foi um dos temas das Jornadas de História do Baixo Guadiana, que tiveram lugar na sexta-feira passada, no Arquivo Histórico António Rosa Mendes, em Vila Real de Santo António.
Marco Sousa Santos, também técnico superior de cultura do Município de Tavira e docente da Universidade do Algarve, depois de salientar que esta pedra de altar estava «à vista de todos», recordou que tudo começou com uma publicação no Facebook, em 2022, feita por uma pessoa interessada na história local e mostrando fotografias da dita pedra, pedindo ajuda para decifrar as inscrições epigráficas que ostenta.
Trata-se, segundo o historiador de arte, de uma «inscrição à moda do século XVI, com abreviaturas». Marco Sousa Santos, que tinha visto a pedra pela primeira vez em 2015, respondeu ao post na rede social, dizendo o que sabia.
Mas faltavam ainda elementos para conseguir transcrever a inscrição na totalidade e, sobretudo, perceber a quem se referia ela…e assim descobrir a sua importância.
Foi mais tarde, através da investigação de Hugo Cavaco (em 2010) e de Fernando Pessanha, a partir de 2014, que se soube mais sobre António Leite, que foi alcaide-mor de Arenilha, desde 1542, e, depois, capitão de Seinal, um forte em Marrocos, na costa do Norte de África, que protegia a fortaleza portuguesa de Alcácer Ceguer.
E porque é que este António Leite interessa para a nossa história sobre a pedra de altar? Porque a inscrição epigráfica, segundo a transcrição que Marcos Santos já conseguiu fazer, diz o seguinte: «Este altar e ermida mandou fazer António Leite estando por capitão no Seinal» ou seja, na grafia da época, “ESTE.(A)LTAR.E.IRMI/DA.MANDOV.FAZER.AMTO.LE.ESTÃNDO.POR.CAPITÃ.N/O.SE(INAL) (…)”.
Na capela de Santo António, em Castro Marim, onde a secular pedra hoje está, há ainda «informação adicional, que a corrobora». É que «a pedra de altar está assente sobre um pedestal que, numa das faces, tem um escudo, muito deteriorado», mas onde ainda se pode perceber que é «esquartelado» (dividido em quatro partes), tal como as armas da família Leite.
Mas como é que estas peças chegaram a Castro Marim, qual foi a sua longa viagem, e que relação têm com Santo António de Arenilha?
Tendo em conta que o forte de Seinal teve curta vida, quando António Leite foi seu capitão terá mandado fazer a pedra de altar, para uma hipotética capela que nunca aí terá sido erguida. Como era hábito na época, nunca se deixavam para trás, acessíveis aos infiéis mouros, elementos sagrados de templos cristãos, pelo que, ao abandonar Alcácer Ceguer e Seinal e regressar a Portugal, no caso, a Arenilha, António Leite terá trazido consigo «estes elementos de cantaria já lavrada, só depois transformados ou adaptados a mesa de altar».
Em 1554, os visitadores da Ordem de Santiago (a quem toda esta zona do Sotavento algarvio pertencia), quando estiveram em Arenilha, dão conta da existência, na ermida de Santo António, de «um altar (…) o qual se trouxe de Seinal», acrescentando que essa ermida teria sido mandada fazer por António Leite, «senhor da dita vila».
Marco Sousa Santos está por isso convencido de que «a mesa de altar terá sido retirada de Santo António de Arenilha no início do século XVII, para a ermida de Santo António, em Castro Marim», onde ainda hoje se encontra. Isto deveu-se ao «declínio» da povoação situada na foz do Guadiana.
Em meados do século XVI, Arenilha era «uma povoação desprotegida, à mercê dos ataques do corso e pirataria». No século XVII, com a Guerra da Restauração, a população ficou ainda mais em perigo e acabou por deslocar-se para o interior, mais longe do mar e, portanto, menos ao alcance de ataques.
Na visão do historiador Fernando Pessanha, a vila de Santo António de Arenilha, ainda antes do maremoto que varreu o que dela restava, já seria uma terra moribunda, com os seus antigos habitantes dispersos pelo seu termo, ou seja, pelo restante território desse antigo concelho.
Resumindo e concluindo: a pedra de altar com a inscrição epigráfica deverá ser «o único elemento arquitetónico que se conhece ligado ao desaparecido forte de Seinal [em Marrocos), e, tanto quanto se sabe, o único elemento arquitetónico que resta de Santo António de Arenilha, o qual vem atestar as origens quinhentistas da vila mais tarde conhecida por Vila Real de Santo António», salientou Fernando Pessanha. Uma dupla descoberta arqueológica, portanto.
Visita à ermida de Santo António revela pormenores
Sobre a importância da ermida, Marco Sousa Santos, por seu lado, salientou o facto de esta ter três pias. «Uma ermida seiscentista não precisava de três pias para nada».
Depois foi a vez de observar, em detalhe as inscrições feitas na pedra do altar. Como já tinha dito o historiador de arte, trata-se de inscrições em «letra impecável, do melhor que se fazia, à romana, seguindo os modelos clássicos».
«Originalmente, estas letras seriam, além de escavadas na pedra, pintadas, para se ler melhor e ver ao longe», contou Marco Santos.
Hoje, apesar de já decifrada na sua maior parte, há ainda um pedaço da inscrição que não se consegue ler, pelo facto de faltar um pedaço da epigrafia, numa zona onde, por razões desconhecidas, a pedra foi lascada.
A ermida de Santo António é ainda local de lendas, ligadas à fama de santo casamenteiro do seu padroeiro.
Segundo Pedro Pires, dizia-se que as raparigas casadoiras deviam dar 12 voltas à capela e depois enfiar o seu dedo na fechadura da porta lateral. Isso faria com que ficassem a saber com quem e quando se iriam casar… Não se sabe se ainda hoje esta tradição se mantém…
Uma década de Jornadas do Baixo Guadiana
Uma década que ficou ainda marcada por mais de vinte e cinco visitas guiadas a sítios de interesse histórico e patrimonial e que assistiu à publicação de um livro de atas, que recolhe algumas das conferências, e durante a qual se deu início à produção de novo livro de atas, a publicar assim que as circunstâncias o permitirem.
Em resumo, uma década apenas interrompida pela pandemia e durante a qual o Arquivo Histórico Municipal António Rosa Mendes «corrigiu uma manifesta lacuna da realidade cultural do Sotavento algarvio e trabalhou em prol da construção e divulgação do conhecimento».
A primeira conferência do dia foi apresentada por Cátia Pereira, tendo como título «O Governo de Sebastião Martins Mestre em Vila Real de Santo António».
A mestre em História e Patrimónios pela Universidade do Algarve explicou de que modo Sebastião Martins Mestre esteve presente em dois dos acontecimentos mais marcantes para a sociedade portuguesa do século XIX: as Invasões Francesas e as Guerras Liberais. Fez ainda uma explanação do que foi o seu governo em Vila Real de Santo António, marcado pelas perseguições aos apoiantes do liberalismo.
A segunda e a terceira sessões das IX Jornadas de História do Baixo Guadiana terão lugar em Março e em Maio, respetivamente, sendo que a sua programação será oportunamente anunciada.
Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação (salvo quando indicado)
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