A vertigem informativa e a esfera pública da comunicação

Felizmente que os algoritmos, por mais inteligentes que sejam, não eliminam a memória, a contingência e a imaginação

Já o dissemos antes, a informação bruta produzida pelas tecnologias de informação e comunicação é a matéria-prima do século XXI e a economia das multidões a principal força propulsora da sociedade digital.

Acresce que as grandes transições em curso desencadeiam inúmeros efeitos externos, positivos e negativos, muitos círculos virtuosos e viciosos e outras tantas pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas.

É aqui, neste metabolismo sistémico emergente e vertiginoso das grandes transições que a contribuição do filósofo Paul Virílio sobre as relações entre velocidade, tecnologia e política faz todo o sentido.

No atual contexto, rodeados de plataformas, redes e aplicativos por todos os lados, vivemos uma verdadeira vertigem informativa que altera substancialmente a nossa perceção da realidade e gera muita agitação no nosso sistema cognitivo, assim como, o risco permanente de colisão.

Imagine-se, por exemplo, a velocidade de uma tecnologia como a inteligência artificial e a automação das máquinas inteligentes e estaremos cada vez mais próximos de muitos incidentes e acidentes de percurso. Uma verdadeira indústria dos acidentes do conhecimento, como diria Paul Virilio.

A vertigem informativa em que estamos mergulhados afeta a perceção da realidade, o procedimento científico, mas, também, o papel e a função da cultura geral que, agora, passa por um processo de desconstrução devido à alucinação e à loucura de tanta informação.

Com efeito, não é só a diferença entre verdadeiro e falso que está em causa, é, ainda, o défice de empatia entre os seres humanos, agora substituído pela sincronização das emoções na colónia virtual, uma espécie de nova tirania dos sentimentos.

De um ponto de vista histórico-epistemológico, depois da imprensa, dos livros e jornais, depois da rádio e televisão, temos agora os smartphones e os ecrãs de computador, ou seja, estamos a assistir a uma transformação estrutural da esfera pública na era da sociedade digital, ou, como diria, o filósofo Jurgen Habermas, assistimos à emergência de uma outra teoria do agir comunicacional.

Estamos claramente num ponto de viragem, mas ainda não sabemos se somos nós, os humanos, a reinventar o grande compromisso da política, ou se é a digitalização da sociedade engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos a impor a normalização e padronização dos nossos comportamentos.

Já sabemos, há muito, que a nossa racionalidade é limitada, mas também sabemos que fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a argumentação e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa.

É esta ação comunicativa a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes e as liberdades públicas asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso.

Ora, a transição para a sociedade digital faz emergir uma outra racionalidade comunicativa, uma espécie de física social, onde o Big Data, a lógica algorítmica, as máquinas inteligentes e a inteligência artificial aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral de outros tempos.

Estamos, assim, perante uma teoria behaviorista e utilitarista do comportamento humano que a racionalidade digital normalizou e padronizou por via da informação e dos dados que nós produzimos constantemente e que, além disso, nos conduzirá, finalmente, até à verdade última sem o ruído e o desperdício da racionalidade comunicativa anterior.

Em suma, uma física social pretensamente superior à racionalidade do agir comunicacional e superior à discussão, à argumentação e à comunicação que a constituem.

É certo, nós não somos como as abelhas que funcionam de acordo com as leis de uma certa física social e, além disso, os enxames digitais são bolhas de consumo e comunicação muito perigosas.

Não obstante esses riscos, a tendência da sociedade digital acentua-se, o espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas descentralizadas e distribuídas que se revelam incapazes de ação política e cognitiva consequente. Em síntese, a vertigem informativa e a adição digital retiram clareza e discernimento à ação e racionalidade comunicativas.

Temos, assim, em confronto direto uma coabitação que se afigura difícil e complexa. De um lado, o pluralismo, a diversidade representativa e a opinião dos outros, uma racionalidade própria da discussão, da argumentação e do contraditório que enriquece e constrói a democracia política.

Do outro lado, temos a privatização e a tribalização da internet e uma revisão dos factos em nome de uma verdade identitária e de grupo. Aqui, o contexto conta pouco, os argumentos não contam, deixa de haver debate e discussão, a ação comunicativa desvanece-se e dissimula-se.

Dito isto, não podemos, todavia, prescindir do compromisso da política porque um somatório de esferas privadas não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas não foram eliminadas, além de que os instrumentos da sociedade digital são muito preciosos para construir a convergência entre valores pessoais e valores sociais.

Em resumo, temos, de um lado, o tempo infra, o tempo do reflexo, o tempo-máquina que foi delegado nas máquinas do tempo e, do outro lado, o tempo lento da política que é o tempo da arte do compromisso social.

De certo modo, a História transferiu-se da Terra para o Céu (o ciberespaço e a computação em nuvem), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e emergiram os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade e à vigilância.

 

Nota Final

Em síntese, de espectadores passivos passámos para emissores ativos de informação, todavia, não podemos tolerar que a embriaguez informativa mantenha as pessoas na ignorância e que a vertigem informativa crie uma agitação no sistema cognitivo que destrói a perceção da realidade e a ação racional.

Estamos já algures entre o capitalismo de informação e o capitalismo de vigilância, de smartphone na mão e nas mãos da caixa negra algorítmica que faz o registo total do nosso comportamento.

Felizmente que os algoritmos, por mais inteligentes que sejam, não eliminam a memória, a contingência e a imaginação.

Mas a verdade vai a caminho de ser privatizada porque a saturação informativa faz-nos perder o impulso para a verdade. Nada parece confiável.

Voltemos, pois, ao essencial. O bem comum e a ética do cuidado, o senso comum e o bom senso, o fundo comum das coisas e a racionalidade da ação comunicativa.

No final, não esqueçamos, a verdade é uma construção social e isso dá sentido à vida em comum, o seu fundamento existencial. E a verdade é um regulador da vida em comum porque nos proporciona o caminho do reencontro.

 

 

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