Lagoa dos Salgados: que deferimento tácito?

Enquanto não se revogarem ou suspenderem os vários planos territoriais, os disparos vão continuar

O acórdão de 7 de setembro de 2023 do Supremo Tribunal Administrativo (disponível aqui em PDF ou em www.dgsi.pt) anulou a decisão de desconformidade ambiental (DECAPE) da urbanização da Unidade de Execução 1 do Plano de Pormenor (PP) da Praia Grande, Lagoa dos Salgados, Silves.

Conhecida que havia sido em 2021 a decisão contrária do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, a minha expetativa, enquanto cidadão, urbanista e ex-dirigente da CCDR do Algarve que decidiu o procedimento, era que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) confirmasse a primeira sentença. Ao invés, reverteu-a. Concordando-se ou não, devemos-lhe respeito.

Os factos constantes nos arestos explicam que a CCDR do Algarve gostaria que a DECAPE não demorasse o que demorou. Mas, a avaliação do cumprimento da Medida 15-A da Declaração de Impacte Ambiental (DIA), enquanto matéria de Biodiversidade e Rede Natura 2000, implicava a avaliação doutra entidade. Uma DECAPE favorável ou desfavorável dependia dessa avaliação.

Apesar de ter negado razão à promotora do empreendimento quanto ao cumprimento da medida 15-A da DIA, orientada para a obrigatória proteção de um importante povoamento de Linaria algarviana, o STA considerou, contrariamente à CCDR, que a DECAPE foi emitida para além do prazo e que, por isso, se formou “um acto tácito de conformidade da DECAPE com a DIA”. O que o regime jurídico de AIA denomina de deferimento tácito (artigo 21.º, n.º 7).

Logo soaram os alarmes. A destruição de um dos mais importantes valores naturais existentes junto à Lagoa dos Salgados pareceu imparável e a urbanização parecia agora poder seguir a todo o vapor para o terreno. Mas, será essa a conclusão que devemos retirar da sentença do STA?

Em avaliação de impacte ambiental (AIA), o deferimento tácito é diferente doutros regimes. A própria decisão do STA parece comprová-lo: em AIA é possível haver uma DECAPE tácita mesmo que a DIA não possa (ainda) ser considerada cumprida, mas tendo de o ser. Confuso? Sim.

Consequências da sentença? A meu ver, a constituição a favor dos particulares do direito a que o procedimento ambiental termine sem decisões expressas (DIA ou DECAPE) e que o procedimento principal de licenciamento prossiga, mas sem ignorar aquele.

Os atos tácitos em AIA implicam uma espécie de transferência de poderes de autoridade de AIA para a entidade à qual compete licenciar o projeto. Ou seja, a decisão da entidade licenciadora sobre o procedimento de licenciamento – urbanístico, no caso – terá de ser mais exigente do que o habitual, porque passa a ter de considerar as diferentes posições e pareceres emitidos ao longo da avaliação ambiental e de indicar, de facto e de direito, quais as condições ou razões ambientais pelas quais o projeto pode ou não ser licenciado.

No caso concreto, com a anulação da DECAPE expressa, o promotor ganhou o direito, não à licença de obras, mas sim a que o procedimento de licenciamento urbanístico prossiga na câmara municipal, porém, sem ignorar as pronúncias das diferentes entidades feitas na avaliação ambiental. Desde logo, a proposta de DECAPE desconforme da Comissão de Avaliação ou o parecer do ICNF que rejeitou as medidas avançadas para cumprimento da Medida 15-A da DIA e compensação pela destruição do povoamento de Linaria algarviana existente na área. Parecer negativo no qual a CCDR necessariamente se louvou para emitir a DECAPE desfavorável.

Até por isso, como poderia estar a câmara municipal hoje legalmente obrigada a considerar o relevante parecer desfavorável do ICNF se a CCDR, por uma qualquer razão que a razão não alcança, não tivesse esperado pelo mesmo para decidir? O que haveria no processo seriam as medidas apresentadas pela promotora sustentando que a Medida 15-A da DIA se encontrava cumprida…

Será por entender mais ou menos assim a sentença do STA que o Sr. Ministro do Ambiente já afirmou que não vê como será possível o projeto turístico ir em frente?
A decisão do STA foi um tiro no porta-aviões, mas o navio não afundou. E mantém-se na rota.

Mas, volta-se a alertar, enquanto não se revogarem ou suspenderem os vários planos territoriais que preveem mais 20.000 novas camas turísticas e 7.000 novos fogos habitacionais para várias zonas sensíveis da costa algarvia, os disparos vão continuar.

PS: Em 2015, na sequência da alteração da DIA, foi sugerida pela CCDR do Algarve à tutela a suspensão do PP da Praia Grande.

 

Autor: Nuno Marques é Urbanista e ex-Vice-Presidente da CCDR do Algarve (2012-2020)

 

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