Sociedade do conhecimento e inteligência territorial

É preciso lutar contra a irrelevância simbólica dos territórios em matéria de património natural e cultural

Vivemos em plena sociedade do conhecimento. Os nossos problemas são, em boa medida, devidos aos défices acumulados de conhecimento. Um desses défices diz respeito à inteligência coletiva territorial que aflora aqui e ali na busca do seu próprio caminho de smartificação.

Vejamos, por exemplo, o que se passa à nossa volta. Nos últimos anos, foram criadas, em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais, o que poderíamos denominar como o embrião de comunidades inteligentes: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, uma rede de smart cities, uma rede de living labs, uma rede nacional de associações de desenvolvimento local, uma rede rural nacional, sociedades de capital venture, uma rede Start Up Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, além de muitas associações empresariais de geometria muito variável.

Pensemos, por um momento, nos imensos efeitos difusos e dispersivos, de duvidosa sustentabilidade, com origem em todas estas putativas comunidades inteligentes, pensemos no seu débil impacto aglomerativo e coesivo sobre os territórios de baixa densidade e ficamos, de imediato, com um amargo de boca no que diz respeito à sua eficácia, eficiência e efetividade, ou seja, a sua smartificação bem-sucedida. Com algumas exceções, como sempre acontece.

E porque é que isto acontece?

Por faltar, justamente, um ator-rede, uma estrutura de missão, uma liderança esclarecida e uma curadoria territorial que cuidem de saber e praticar que o todo é maior que a soma das suas parcelas.

Não há coesão territorial e smartificação de comunidades intermunicipais que resistam a estes efeitos difusos e dispersivos.

Muitos dos efeitos externos das entidades referidas não são monitorizados e, mais tarde ou mais cedo, acabam por perder-se na malha sensível dos frágeis tecidos empresariais municipais e intermunicipais onde predominam as micro e pequenas empresas muito mal capitalizadas.

Na atual conjuntura, depois de uma epidemia, de uma guerra na Europa que ainda ninguém sabe como irá acabar, dos efeitos de ricochete de dez pacotes de sanções, de uma crise energética e uma vaga inflacionista, não sabemos como irá reagir essa massa imensa de micro e pequenas empresas que formam o tecido económico do nosso país ao programa de intervenção que denominámos de recuperação e resiliência (PRR).

Não é por acaso que uma das suas principais medidas se denomina de recapitalização empresarial que, curiosamente, o relatório recente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR classifica em estado crítico por manifesta falta de execução.

É certo que estamos ainda no início da transição digital. A cobertura digital do território não é satisfatória, as dificuldades de acesso e a iliteracia são evidentes, os modelos de negócio digital não estão ainda bem ajustados, a regulação da atividade digital está em aberto, as questões de privacidade e segurança não estão resolvidas, as cadeias de valor estão em reconstituição, os assuntos fiscais suscitam muitas dúvidas.

Seja como for, as exigências da transformação digital e os efeitos externos das grandes transições vão colidir contra essa massa imensa de micro e pequenas empresas e alterar profundamente a perceção sobre o valor cognitivo da inteligência coletiva territorial.

Como sabemos, a inteligência coletiva dos territórios não se reduz a uma operação simples de informatização ou digitalização.

Por outro lado, o valor cognitivo da inteligência coletiva territorial (ICT) será muito valorizado se forem construídos certos pontos de acostagem necessários ao mapeamento do território, por exemplo, os planos de ordenamento, a requalificação dos espaços circundantes de infraestruturas, as marcas de referência dos produtos, a certificação de serviços e destinos, a acreditação de estruturas coletivas para a promoção dos territórios, a criação de parcerias sólidas com os centros de investigação, programas de intervenção comunitária, entre outros.

Este mapeamento e pontos de referência e acostagem são as fontes de inteligência coletiva que os atores-rede devem transformar em recursos e ativos cognitivos do desenvolvimento territorial.

Finalmente, é preciso lutar contra a irrelevância simbólica dos territórios em matéria de património natural e cultural.

De facto, sem uma geografia desejada e um enraizamento significativo na cultura tradicional, os territórios podem transformar-se em simples territórios de suporte e os seus símbolos e signos mais emblemáticos podem ser transformados em mero pastiche traficado no mercado turístico.

Ou seja, depois da desintermediação política e institucional induzida pela transformação digital existe, agora, o risco de uma desterritorialização acrítica e irreversível que é preciso evitar a todo o custo.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



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