Lagoa dos Salgados: Millenium/BCP “ameaça” com pedido de indemnização milionária

CEO do banco considera que há «direitos adquiridos plenamente válidos»

Lagoa dos Salgados – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O CEO do Millenium/BCP ameaça o Estado Português com um pedido de indemnização milionária se avançar a classificação da Lagoa dos Salgados, no concelho de Silves, como reserva natural.

Num email enviado a 7 de Janeiro aos ministros do Ambiente e da Economia (Matos Fernandes e Siza Vieira), a que o Sul Informação teve acesso, o CEO Miguel Maia manifesta a sua «apreensão e perplexidade» perante as notícias, de que terá tido conhecimento através da comunicação social, relativas à classificação de 400 hectares no litoral do concelho de Silves, que incluem a Lagoa dos Salgados, o Sapal de Pêra/Alcantarilha, bem como todos os terrenos entre estas zonas húmidas e o cordão dunar.

Ora, em cerca de 110 desses 400 hectares, há um terreno para onde empresas que hoje são propriedade do Grupo BCP – Finalgarve, Bichorro e Fiparso – preveem um projeto para 4000 mil camas turísticas, com hotéis, vivendas e campo de golfe, mesmo à beira da Lagoa dos Salgados.

Considerando que há «direitos adquiridos plenamente válidos» e escudando-se em pareceres jurídicos de quatro especialistas das universidades de Coimbra e de Lisboa (ver mais abaixo a cronologia), Miguel Maia ameaça os dois ministros com um pedido de «indemnização» pelos prejuízos que aquelas empresas do Grupo BCP irão alegadamente sofrer caso avance a Reserva Natural, prejuízos esses que estima em «100 milhões de euros».

Numa altura em que decorre, até amanhã, dia 20 de Janeiro, a discussão pública sobre a proposta de classificação da Lagoa dos Salgados como Reserva Natural, os responsáveis daquele banco agarram-se à questão da aprovação, pela Câmara e depois pela Assembleia Municipal de Silves, em Dezembro de 2007, da Unidade de Execução 1 do Plano de Pormenor da Praia Grande, que se refere precisamente ao mega projeto turístico promovido pelas empresas do universo do Grupo BCP.

 

Flamingos jovens, no sábado, na Lagoa dos Salgados – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Ontem, durante a sessão de esclarecimento pública sobre a proposta da Reserva Natural, promovida pela Câmara de Silves e pela associação Almargem, no Centro Paroquial de Pêra, com a presença física de mais de quarenta pessoas e a participação online de várias outras dezenas, a situação legal desse Plano de Pormenor (PP) foi explicada pelo vereador Maxime Bispo, que é, ele próprio, jurista.

«O Plano não confere direitos, apenas confere expectativas», defendeu o vereador, acrescentando que «o atual executivo da Câmara Municipal de Silves não se revê no PP da Praia Grande, que está datado, está ultrapassado». Além disso, acrescentou, «a execução desse Plano está muito condicionada», porque apenas uma pequena parte dos terrenos é realmente propriedade da Finalgarve.

Aliás, explicou Maxime Bispo, o novo PDM de Silves, publicado em Janeiro de 2021, portanto há um ano, apesar de não revogar o PP da Praia Grande (por razões processuais), não prevê a construção de um resort turístico na área, mas sim «ocupação rústica e espaço natural», o que, salientou, «é perfeitamente compatível com toda a lógica da classificação da Lagoa dos Salgados».

«Queremos persistir num modelo de litoral algarvio betonizado e com turismo de massa, com emprego precário? Ou preferimos apostar em atividades sustentáveis, em tirar partido dos valores ambientais, em qualificar, para atrair outro tipo de turismo, com outra qualidade, com mais dinheiro, que garanta empregos com alguma segurança, para que as pessoas possam ter qualidade de vida aqui no território?», interrogou o vereador da Câmara de Silves. Mais, acrescentou, «que território queremos legar às gerações vindouras?».

Maxime Bispo concluiu: «o Plano de Pormenor da Praia Grande encontra-se em coma e está apenas à espera que alguém desligue as máquinas». Quem o irá fazer? O autarca não o disse, mas é aí que está o busílis de toda esta questão.

 

Antigos campos agrícolas onde existe a Linaria algarviana – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Num processo de consulta pública que se está a revelar como um dos mais participados de sempre a nível nacional – já leva perto de 800 participações -, além do Millenium/BCP, há mais quem não esteja confortável com a classificação da zona como reserva natural. Por isso, já chegou à Câmara de Silves, na semana passada, um abaixo-assinado de alguns proprietários de terrenos a abranger pela classificação, manifestando a sua preocupação.

Curiosamente, ontem, na sessão pública de esclarecimento em Pêra, não estava presente nenhum desses proprietários, pelo menos ninguém se identificou como tal.

Tendo em conta que a fase de discussão pública, que começou a 9 de Dezembro e termina amanhã, 20 de Janeiro, é aberta a todos, presume-se que quem assinou o abaixo-assinado também vá apresentar as suas preocupações no portal Participa.pt ou por outro meio previsto para a participação. Como frisou o vereador Maxime Bispo, «os proprietários podem participar neste processo que é público e transparente».

De qualquer modo, pelo que ficou dito na sessão, esses proprietários podem ficar mais descansados. A eventual criação da Reserva Natural não significará «proibir tudo», como salientaram Anabela Santos, dirigente da associação Almargem, ou Joaquim Castelão Rodrigues, diretor regional do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), que promove a proposta de classificação da Lagoa dos Salgados.

«Terá de haver uma gestão ativa da reserva natural, as pessoas terão de poder usufruir dos espaços, terão de participar nessa gestão, até para terem orgulho nesta reserva, que é um espaço único», sublinhou Anabela Santos. «Hotéis com campos de golfe? Não! Mas agroturismo, sim!, há condições para isso».

Castelão Rodrigues, por seu lado, falou da possibilidade de voltar a promover a atividade agrícola nos terrenos abrangidos pela futura reserva, nomeadamente recuperando o pomar de sequeiro (amendoeiras, figueiras) ou promovendo a vinha, bem como mantendo o pastoreio (neste momento há dois rebanhos de ovelhas a utilizar a área).

Este responsável do ICNF adiantou ainda que a futura reserva natural será gerida em regime de «cogestão», o novo sistema que inclui a participação das Câmaras Municipais, de entidades públicas e privadas e de cidadãos. Aliás, a Comissão Executiva da área protegida em cogestão é sempre presidida pelo (ou pela) presidente de Câmara.

 

Observação de aves na Lagoa dos Salgados – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Haverá igualmente espaço para atividades de natureza e para a ação das empresas de animação turística, nomeadamente as que, todos os dias, levam até à Lagoa dos Salgados turistas para fazer caminhadas e, sobretudo, para observar aves.

«A Lagoa dos Salgados é dos espaços mais visitados, em todo o país, quer por pessoas que querem conhecer a natureza e observar aves, quer por técnicos e cientistas de várias instituições nacionais e internacionais», sublinhou Domingos Leitão, diretor-executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), também participante na sessão em Pêra.

As regras e os usos futuros ficarão consagrados num plano de gestão e no regulamento, cuja discussão, também pública e envolvendo todos, avançará após a classificação como reserva natural.

Para contestar os alegados «direitos adquiridos» por parte dos promotores do empreendimento turístico previsto para a área do Plano de Pormenor da Praia Grande, a proposta de classificação avança com os valores ambientais em causa.

Ora, no sábado, durante um dia de atividades para o público promovido ao longo dos 400 hectares da futura reserva natural, esses valores ficaram bem à vista de todos.

André Carapeto, especialista da Sociedade Portuguesa de Botânica, que guiou um dos passeios, à descoberta da flora e dos habitats daquela vasta área, chamou sobretudo a atenção para a presença do mais importante núcleo da Linaria algarviana, uma espécie já muito rara e exclusiva do Algarve, que é de proteção prioritária segundo a legislação comunitária.

Em toda a região algarvia – e no mundo, visto que só existe aqui – a população em melhor estado da Linaria algarviana é a dos Salgados, sendo portanto esta zona essencial para a sobrevivência da espécie. As restantes populações existentes são pequenas e estão fora de áreas protegidas, estando, portanto, sujeitas a desaparecerem.

André Carapeto, que conhece como ninguém o terreno, no que à flora diz respeito, explicou ao Sul Informação que esta planta é um «terófito», isto é, a planta faz o ciclo de vida todo no mesmo ano, morrendo no fim do ciclo, antes do Inverno, mas deixando sementes debaixo da terra, que germinarão no ano seguinte. Precisa, portanto, de uma área com alguma vastidão para poder deixar as suas sementes bem espalhadas e assim sobreviver.

André Carapeto acrescentou que, além das ocorrências conhecidas junto à Praia Grande, têm sido detetados núcleos de Linaria algarviana na área que iria ser ocupada pela urbanização, pelo que não é viável a sua gestão e sobrevivência se o resort avançar.

A discussão pública sobre a criação da Reserva Natural da Lagoa dos Salgados decorre até amanhã e todos podem participar e dar a sua opinião. A Almargem, em nome do Movimento Participativo Lagoa dos Salgados, elaborou um manual para utilização do portal Participa.pt, bem como uma minuta de um parecer, que pode ser livremente copiado e usado por todos. Clique aqui para saber mais.

 

Atividades de natureza na área da futura reserva natural da Lagoa dos Salgados – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Existem compromissos urbanísticos na área inserida na proposta de classificação da Lagoa dos Salgados como Reserva Natural?

Primeiro, há que distinguir bem dois planos:

1. Há ali valores protegidos por duas Diretivas Comunitárias (Linaria algarviana nos Anexos II e IV da Diretiva Habitats e uma série de aves nidificantes, invernantes ou migratórias que são protegidas pela Diretiva Aves), logo nenhum direito a edificar se pode sobrepor. As espécies estão mesmo lá, o que obriga o Estado português a conservar os habitats.

2. Pode ter havido desconhecimento por parte da Câmara Municipal de Silves em relação a estes valores naturais, que levou à prática de atos administrativos que tenham gerado algumas expectativas e quase direitos (são mesmo direitos na ótica dos autores dos pareceres jurídicos pedidos pelo Millenium/BCP).
Mas isso não vai dar direito a construir, porque estão lá às espécies; poderá eventualmente dar direito a indemnização. E é disso que o CEO do Millenium/BCP já falou, no seu email para os ministros do Ambiente e da Economia.

A Finalgarve tem ou não direito a indemnização?
Após a análise por parte de juristas ouvidos pelo Sul Informação, não é líquido que tenha.

Primeiro, porque a CCDR Algarve decidiu negativamente sobre a conformidade ambiental do projeto de execução (DECAPE). Logo, não chegou a constituir-se, para a empresa interessada, o direito de concretizar as operações urbanísticas do projeto de construção do UE1- PP Praia Grande, pois falta a DECAPE favorável, que é o documento essencial para permitir a emissão dos atos de licenciamento ou de autorização dos projetos abrangidos pelo regime de AIA. Sem ele, nada feito.

Depois, embora a DIA não seja o ato final desse procedimento, pode defender-se que poderá dar à proponente certos direitos.

No entanto, no caso dos Salgados, a DIA foi emitida em fase de estudo prévio, sendo necessário, para completar a DIA, que se verificasse o requisito da conformidade ambiental do projeto com essa DIA, o que não chegou a acontecer. Ou seja, fez-se a declaração de impacte ambiental, mas as medidas propostas pelos promotores não chegam para compensar os danos ambientais.

Em terceiro lugar, a AIA (avaliação de impacte ambiental) não é o verdadeiro procedimento em si. Ela é apenas uma etapa de um procedimento administrativo maior, servindo apenas para avaliar os efeitos significativos do projeto se este fosse levado a cabo.

E compreende-se que assim seja, sobretudo quanto ao habitat da planta estritamente protegida, a Linaria algarviana.

 

CRONOLOGIA

07/12/2007 – A Assembleia Municipal de Silves aprova, sob proposta da Câmara Municipal (CMS), o Plano de Pormenor (PP) da Subunidade Operativa de Planeamento e Gestão II da Praia Grande.
22/06/2012 – Celebração do contrato de desenvolvimento urbano
07/11/2012, 11/09/2013 e 09/07/2014 – Aprovação nestas três datas, por deliberação da CMS, do loteamento e dos projetos das obras de urbanização
07/02/2013 – O projeto UE1, em fase de estudo prévio é submetido a Avaliação do Impacte Ambiental (AIA)
30/10/2013 – A CCDR Algarve emite Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável condicionada
05/06/2015 – Notificação da “Finalgarve- Sociedade de Promoção Imobiliária e Turística, S.A.” para se pronunciar relativamente à proposta de alteração da DIA, em sede de audiência prévia
22/06/2015 – A CCDR Algarve aprova uma alteração à DIA
03/08/2017 – A Câmara Municipal de Silves emite o Alvará de Loteamento n.º 3/2017, que titula a aprovação da operação de loteamento e das obras de urbanização incidentes sobre os terrenos da UE1
29/09/2017 – É submetido o RECAPE relativo às infraestruturas gerais da UE1
20/10 a 10/11/2017 – Decorre a discussão pública (referência a processo judicial de impugnação da DIA a correr no TAF de Loulé
15/11/2017 – Prorrogação da validade da DIA
18/12/2017 – Envio da proposta de DECAPE desfavorável para pronúncia em fase de audiência prévia
13/07/2018 – Emissão de DECAPE desfavorável pela CCDR Algarve
24/07/2018 – Apresentação de reclamação por parte da Finalgarve
22/11/2018 – A empresa intentou uma ação administrativa no TAF de Sintra para declaração de nulidade/anulação da DECAPE desfavorável e para reconhecimento da sua posição jurídica decorrente da DECAPE tácita favorável, enquanto ato constitutivo de direitos
11/2/2019 – Deliberação, pela CMS, de suspensão da eficácia do Alvará de Loteamento n.º 3/2017 “até à junção aos autos de DECAPE favorável”
14/05/2021 – Decisão do TAF de Sintra, que julga a ação totalmente improcedente
07/06/2021 – CCDR dá conhecimento à empresa da posição do ICNF
Setembro/2021 – Millenium/BCP envia ao ICNF dois pareceres jurídicos, da autoria das professoras Fernanda Paula Marques de Oliveira e Dulce Lopes (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e dos professores João Miranda e Diogo Calado (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Novembro/2021 – Ministério do Ambiente e ICNF anunciam a proposta de classificação da Lagoa dos Salgados como área protegida de âmbito nacional
9 de Dezembro 2021 a 20 de Janeiro 2022 – Discussão pública
Janeiro de 2022 – Pendente recurso interposto para o STA

 



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