“Estar com preceitinho”

A igualdade não é o oposto da afabilidade e da civilidade e estas, por sua vez, não são sinais de servilismo ou, pelo contrário, de superioridade

Imediatamente me abriu a porta, com uma enorme delicadeza, para que eu passasse primeiro. Tinha cerca de 80 anos e, desde o primeiro instante em que nos conhecemos, este senhor, de formação académica muito alta e perito em Filologia (para quem desconheça o termo, em línguas, idiomas) só teve gestos de cortesia e delicadeza.

A dado momento, caminhando do meu lado esquerdo, disse-me: «A uma senhora tratamos sempre com o maior respeito e damos-lhe o que temos de melhor, quanto mais não seja, o melhor lado para caminhar, para se sentar». Encantou-me.

Hoje é comum ouvirmos dizer que estes gestos estão fora de moda e que não servem para nada, sobretudo numa sociedade em que se deseja a igualdade de género e o respeito pelas mulheres; que seriam gestos de rebaixamento, por assim dizer; gestos que a diminuiriam, por a tratarem como um ser que precisa de proteção especial, de cuidados diferentes dos homens.

E se pensássemos ao contrário? Não serão antes atos que revelam um carinho profundo, um enorme respeito por alguém que se tem como um ser especial?

Penso na minha vida e no que tenho feito em relação aos que mais amo: os meus avós, a quem respeitava pela sabedoria, pela idade, pelo amor que me deram sempre. Não me passaria pela cabeça gritar-lhes, ainda que os tratasse por tu e o lugar melhor da mesa era deles, por tudo isso que sentia na sua presença.

Penso nos meus pais e em como me preocupo ao entrar no carro, garantindo-lhes o lugar mais confortável e que lhes dará mais segurança ao saírem. Não fazem os pais o mesmo pelos seus filhos, cuidando para que permaneçam bem, no melhor lugar e para que saibam estar, aprendendo comportamentos e normas que lhes asseguram que serão pessoas respeitadas (estar bem à mesa, falar com correção, vestir-se adequadamente a cada situação, respeitar os mais velhos, os mais novos, etc.)?…

É tudo antiquado, na perspetiva de alguns, tenho a certeza. Eu não vejo assim.

Estas são as regras básicas que todos compreendemos e aceitamos que nos permitem estar melhor com os demais. Há outras mais complexas, mas que assentam nestas premissas, as regras do protocolo.

Essas, então, são mesmo desprezadas por muitos. Acreditam que são sinais reveladores de conservadorismos retrógrados, de desigualdades sociais ou de separação de estratos, como numa taxonomia verdadeiramente próxima da definição das ordens dos seres vivos.

Mas não é esse o objeto, nem a missão do protocolo. É precisamente o inverso: é definir que todos têm o respeito merecido e que isso se traduz nos gestos e atitudes.

Esses críticos acabam, depois, por não saber como reagir em determinados acontecimentos, dando uma imagem de si mesmos incompatível, tantas vezes, com aquilo que desejam no seu íntimo, e, em determinadas circunstâncias, incompatível com a dignidade das funções que desempenham e das instituições que representam.

Desvaloriza-se a delicadeza, a cortesia e, todavia, ela só revela desvelo por algo ou alguém de quem gostamos ou respeitamos. Desvaloriza-se uma sabedoria ancestral, que nos garantiu que houvesse harmonia nos nossos encontros, para que os mesmos possam decorrer de forma memorável e cheia de humanidade.

E não estamos a falar de estatuto social e económico, de grau académico ou de função profissional. Estamos a falar do que é mais básico: boa educação.

O meu sábio avô Manuel era visto por todos como um “gentleman”. Tendo crescido numa família desestruturada, podendo frequentar a escola apenas até ao 4º ano, trabalhando arduamente desde a adolescência, recebeu da sua mãe Margarida e absorveu de todos os que conheceu ao longo da vida um saber estar fenomenal, que lhe permitia conversar com qualquer académico, comer à mesa com qualquer chefe de estado, tratar igualmente cada colaborador ou cada pessoa que precisasse da sua ajuda. Era, como se diz na sua terra minhota, “um senhor”!

E sabem, eu não tenho vergonha disso, pelo contrário! Assim como não me sinto ofendida com os gestos tão delicados de um senhor octogenário, que tinha tanto para ensinar às gerações mais novas!

A igualdade não é o oposto da afabilidade e da civilidade e estas, por sua vez, não são sinais de servilismo ou, pelo contrário, de superioridade. São, somente, os traços de carácter e a assinatura de quem, como dizia o pequeno aluno da minha mãe, o Nuno, sabe “estar com preceitinho”!

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira é licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática pela Universidad de Huelva.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral do Turismo e da ONPT.

 

 



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