A solidão do trabalho digital, entre o écran e a máscara

A solidão do trabalho digital, entre o écran e a máscara, espera-se que não alimente muitos dos nossos preconceitos e pequenos ódios de estimação

A revolução tecnológica e digital em curso determina uma revolução no universo do mercado de trabalho tal como o conhecemos. Algumas propriedades deste novo universo digital já aí estão: trabalho independente, trabalho intermitente, prestação de serviço em vez de contrato de trabalho, relação pós-salarial, nomadismo digital, trabalho à distância, plataformas, écrans e aplicativos, entre outras.

De uma certa perspetiva, estamos a falar da solidão do trabalho digital, quase sempre entre o écran e, agora, também, a máscara. Vejamos as propriedades principais desta emergência digital no universo laboral.

>>O trabalho de longo prazo sob a proteção de contratos coletivos já não caracteriza os modelos socio laborais que organizam hoje o mundo do trabalho,

>>O fim das carreiras e a emergência dos trabalhos temporários desemboca numa crise do universo socio profissional,

>>A intermitência profissional determina e exige a formação permanente ao longo da vida,

>>O nomadismo digital é o sinal de uma mobilidade geográfica cada vez maior em busca de novas experiências e oportunidades,

>>Uma crescente mobilidade reflete-se numa instabilidade familiar e psicossocial,

>>O individualismo laboral reflete-se numa crescente desvalorização das organizações sindicais e corporativas,

>>O individualismo e a mobilidade refletem-se numa quebra dos laços de confiança, lealdade e sociabilidade no mundo do trabalho que o trabalho temporário agrava,

>>Uma crescente degradação do ambiente socio laboral transforma a exposição aos riscos em exposição ao perigo,

>>O crescimento do trabalho temporário e a falta de um horizonte profissional confundem o trabalhador no que diz respeito aos incentivos ao mérito e à produtividade,

>>O vínculo laboral é, por tudo isto, cada vez menor e, assim, o cidadão tal como o conhecemos tem de ser reinventado no que diz respeito às suas múltiplas filiações.

Em suma, estamos a assistir a uma progressiva desagregação do vínculo laboral, social e simbólico. Essa desagregação é particularmente visível no hipercapitalismo dos grandes conglomerados da nova economia digital.

No estádio atual da revolução digital, já se vislumbra uma polarização social crescente e perigosa. De um lado, o trabalho digital qualificado e bem remunerado que gira em volta dos grandes conglomerados tecnológicos, do outro, a chamada ideologia da uberização, a última versão radical do capitalismo, que anuncia um novo regime independente e pós-salarial.

No fundo, tudo fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta, em trânsito acelerado para o precariado digital, a nova servidão voluntária das redes, sempre no interior do capitalismo neoliberal e em rota de colisão civilizacional em matéria de direitos económicos, sociais e humanos.

É preciso avisar, em particular, os nativos digitais mais distraídos para esta sedução virtual e para a ilusão do chamado auto empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial. Anuncia-se a conexão máxima com o 5G, a via aberta da solidão com o trabalho independente e o nomadismo digital, mas, também, a distração total pela gamificação, a ludificação e as artes do entretenimento.

Entretanto, o velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal já foi ultrapassado, estamos permanentemente disponíveis, esquecemos o tempo para o amor, a amizade e a solidariedade.

Hoje discute-se, mesmo, o direito de desligar fora das horas de trabalho. Por outro lado, a precariedade do trabalho e a sua intermitência são uma realidade nua e crua, assim como o seu corolário lógico, a pluriatividade e o plurirrendimento, distribuído por tempos de trabalho cada vez mais fracionados.

Quer dizer, no que diz respeito aos trabalhadores independentes, precários e intermitentes do universo digital em sentido amplo, eles terão uma identidade e percursos profissionais feitos a partir de múltiplas experiências, pois no futuro próximo todas as sociedades serão uma espécie de coleção de diásporas feita de migração e nomadismo, mas, também, de muita interação e intermitência.

É neste quadro geral que se inscreve a formação das novas classes sociais da era digital:

– A hiper classe digital: uma elite digital reduzida, mas em crescimento, bem remunerada e que dispõe de todos os meios e dispositivos de conexão e criação, cujos membros criam e manipulam informação em múltiplas plataformas, razão pela qual são nómadas digitais privilegiados e vivendo, por isso, uma solidão voluntária feita de múltiplas intermitências.

– A classe média digital: o digital labor, um grupo que procura alargar-se e afirmar-se, em luta para se juntar à hiper classe e fugir ao proletariado digital; uma parte com vínculo laboral e outra parte em regime de trabalho independente e prestação de serviço, mas, em ambos os casos, a inovação e a obsolescência tecnológicas ameaçam com a precariedade e a intermitência profissionais; uma parte importante destes profissionais dedica-se às novas formas de produção de conteúdos, em especial as indústrias das artes do espetáculo, entretenimento e distração que são fundamentais para manter este digital labor nos limites aceitáveis da tolerância social e política.

– O proletariado digital: uma certa forma de digitalismo proletário, um grupo muito vasto, indiferenciado e disfuncional, deixado para trás nos interstícios do modelo pós-industrial dos bens e serviços mais tradicionais, sempre no limbo de um digitalismo elementar e no limiar de uma pobreza sistémica.

 

Nota Final

Em síntese, o universo do trabalho, hoje, perdeu a consistência ideológica e narrativa que lhe era dada pelo capitalismo industrial, ao introduzir um corte vertical e temporal na vida de cada trabalhador.

O tempo longo do contrato de trabalho e a promessa de uma carreira profissional deram o lugar ao tempo curto intermitente e variável e à prestação de serviço.

Quanto ao resto, a solidão do trabalho digital, entre o écran e a máscara, espera-se que não alimente muitos dos nossos preconceitos e pequenos ódios de estimação.

Estamos programados para o contacto face a face, olhos nos olhos. Olhar nos olhos e corar por sentir vergonha torna muito mais difícil odiarmo-nos. Arranjemos tempo, pois, para cuidar da nossa ecologia sentimental. Liguemo-nos aos humanos e transformemos a solidão em solidariedade, tão simples como isso.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



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