Museu do Traje de São Brás de Alportel: um património humano e cultural a salvaguardar!

Como pode uma decisão, que cremos ser apenas por desconhecimento, colocar em causa um património único a nível regional e um trabalho ímpar com as pessoas? Como pode uma instituição como a Santa Casa da Misericórdia permitir este desassossego?

Há momentos em que não podemos ficar em silêncio, especialmente quando as circunstâncias nos impõem uma ação como imperativo cívico, de consciência e de ética profissional. Este é um desses momentos, quando começamos a ter sinais concretos de que pode estar em perigo a salvaguarda do património cultural do Museu do Traje de São Brás de Alportel, como alertava o ilustre e meu querido professor na Universidade de Coimbra, José d’Encarnação, no jornal “Notícias de São Braz” de 20.07.2021.

O Museu do Traje de São Brás de Alportel é, hoje, uma referência a nível nacional e internacional pelo caminho coerente, continuado e consistente que foi fazendo ao longo das últimas duas décadas, numa ligação fortíssima com as comunidades, implicado na ação e discussão da vida do território e dos seus habitantes. Foi e continua a ser palco para o pensamento e a criação de conhecimento sobre a identidade dos São-Brasenses através do estudo das coleções que alberga.

É um espaço de todas pessoas de São Brás, onde todos se podem encontrar, exemplo disso é a modelar Associação de Amigos do Museu, o sonho de qualquer diretor de museu! Uma Associação que espelha a multiculturalidade da comunidade, assim como dá resposta às necessidades da mesma, criando relevância e valor acrescentado naquelas comunidades.

Os museus são lugares de colorir o mundo, onde se criam diálogos, são espaços de tolerância, que promovem o conhecimento para evitar o medo do outro. Por outro lado, são lugares seguros para discutir assuntos inseguros. No fundo são lugares da humanidade.

Mas muitos museus não conseguem sê-lo e/ou não ousam sê-lo! Não é, porém, o caso do Museu do Traje de São Brás de Alportel que ousa a diferença.

No contexto da museologia nacional, estamos perante um museu relevante, com vida e que parte das coleções, do território e das pessoas para transformar, para pensar o presente e para ser parte das comunidades e não apenas o reflexo dessas comunidades.

Este é o Museu que agora parece estar em perigo, como é possível termos chegado aqui?… Como pode uma decisão, que cremos ser apenas por desconhecimento, colocar em causa um património único a nível regional e um trabalho ímpar com as pessoas? Como pode uma instituição como a Santa Casa da Misericórdia permitir este desassossego?

Acreditamos que ainda estamos a tempo de inverter este momento pouco feliz para o património cultural algarvio e de ver reforçada a capacidade de ação do Museu do Traje de São Brás de Alportel.

O projeto “Museu em Camadas”, concretizado entre 2013 e 2016, na qual tive a honra de participar em algumas sessões, deu origem a vários trabalhos de académicos publicados em revista científicas internacionais. Este foi o ponto de viragem no trabalho do Museu, quando se ligou com maior consistência à investigação e ao pensamento, com consequências muito práticas nas exposições que produziu e no trabalho comunitário que foi sublimando.

Hoje este método de trabalhar um museu é referência para muitos profissionais. Deste periférico, se hoje ser periférico não é tão central como não o ser, cantinho da Europa do Sul, o nosso Museu do Traje de São Brás de Alportel criou uma metodologia para museus do Mundo inteiro.

“Museu para Todos” um trabalho em curso, em torno de uma temática que me é muito querida, coloca a acessibilidade na agenda do museu e torna-o ainda mais inclusivo e capacitado para receber pessoas com necessidades especiais. Alguns dos leitores podem pensar que é um tema banal ou comum, mas veja-se a museologia algarvia e perceba-se que, mais uma vez, estamos perante uma decisão que coloca o museu na linha da frente na região.

Estou nos museus do Algarve há 25 anos… Conheço bem o Emanuel Sancho e com ele fiz o percurso de uma Museologia implicada, atuante, participativa e comunitária.

Mais tarde com ele, com o José Gameiro, o Jorge Queiroz e a Idalina Nobre, criámos a Rede de Museus do Algarve (2006).

Sei da sua capacidade de inovação, de trabalho, de exigência e qualidade naquilo que realiza. São as pessoas que fazem a diferença e o Emanuel Sancho faz a diferença! Pegou no valioso legado dos irmãos Cunha e soube respeitá-lo, dignificá-lo e trabalhá-lo de forma profissional, competente e ousada, com meios sempre muito reduzidos, mas recorrendo permanentemente a soluções novas para ter comunicação, investigação, inventário, conservação e exposições…

Tanto para dizer sobre o saber fazer deste museu, tanto para partilhar dos momentos (e foram muitos) de partilha, de confronto de ideias e de crescimento que vivi (e espero continuar a viver) neste espaço.

Mas o foco agora é ser apenas um grito claro (lembrando o grande poeta António Ramos Rosa) de alerta para a Santa Casa da Misericórdia num repto de não adiar o apoio ao Museu do Traje de São Brás de Alportel.

Repto, ainda, para os Amigos do Museu, para que exerçam com veemência e firmeza o vosso direito de cidadania e liberdade para que nasça o grito claro na defesa do vosso/nosso Museu.

E, por fim, um pedido de ajuda público à Câmara Municipal de São Brás de Alportel para que atue de forma convicta na defesa do seu património cultural que é de todos, pois, neste Museu do Traje de São Brás de Alportel, pulsa o coração das várias comunidades São-Brasenses.

 

Autora: Dália Paulo é Museóloga e Gestora Cultural, foi vice-presidente do ICOM Portugal de 2017 a 2020

 

 



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