Inteligência territorial, economias de rede e efeitos externos

A inteligência coletiva dos territórios não se reduz a uma operação simples de informatização ou digitalização

Na sequência do meu último artigo, um dos aspetos mais pertinentes da inteligência territorial diz respeito às economias de rede e aglomeração e, em particular, ao impacto dos chamados efeitos externos.

Nos últimos anos, foi criada em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais, uma grande variedade de comunidades inteligentes, por exemplo: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, smart cities, uma rede de living labs, uma rede nacional de associações de desenvolvimento local, uma rede rural nacional, sociedades de capital venture, uma rede Start Up Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, para além de muitas associações empresariais de geometria muito variável.

Pensemos, por um momento, nos imensos efeitos difusos e dispersivos, de duvidosa sustentabilidade, com origem em todas estas presumidas comunidades inteligentes, pensemos no seu débil impacto de aglomeração e coesão sobre os territórios de baixa densidade, pensemos nos inúmeros efeitos indesejados e não-intencionais e ficamos, de imediato, com um amargo de boca no que diz respeito à sua eficácia, eficiência e efetividade, ou seja, a sua smartificação bem-sucedida. Com algumas exceções, como é evidente.

E porque é que isto acontece? Por faltar, justamente, um ator-rede ou uma curadoria territorial que cuide de saber e praticar que o todo é maior do que a soma das suas parcelas.

Muitos dos impactos externos da ação das entidades referidas não são monitorizados e articulados e, mais tarde ou mais cedo, acabam por perder-se na malha difusa das áreas industriais e dos frágeis tecidos empresariais municipais e intermunicipais.

Quanto ao impacto e integração dos efeitos externos, importará, ainda, dizer que a economia das redes digitais da 5ª e 6ª gerações introduzirá no sistema económico uma hipervelocidade e elevada conectividade e este sobreaquecimento fará emergir uma nova geração de efeitos externos onde se contam os efeitos colaterais, as interações fortuitas, os comportamentos furtivos e as descobertas acidentais.

No conjunto, a desmaterialização e a virtualização podem, mesmo, transformar a economia digital numa gigantesca operação de dissimulação tendo em vista, também, ocultar uma parte substancial das externalidades criadas, em especial, as externalidades negativas, associadas ao grupo dos comportamentos furtivos, em particular, a evasão e a fraude, o risco moral e o free raider ou risco do passageiro clandestino.

Dito isto, todos estes riscos requerem um posto de observação e monitorização permanente e essa é a razão pela qual toda a teoria dos efeitos externos precisa de ser revista, sob pena de a sua regra de oiro, a “privatização do benefício e socialização do prejuízo”, se transformar num crime de lesa-pátria recorrente.

Em síntese, para reduzir o risco sistémico, os efeitos colaterais e não intencionais, os comportamentos furtivos de risco moral e passageiro clandestino, a economia da transição digital deve acautelar os seguintes aspetos:

– Reduzir a entropia e melhorar a sinergia de processos e procedimentos das cadeias valor,

– Reduzir a linearidade e melhorar a circularidade, em aplicação da política de 4R,

– Reduzir a competição agressiva e melhorar os meios de cooperação entre operadores,

– Reduzir o consumo de recursos materiais e aumentar o de recursos imateriais,

– Reduzir o consumo de combustíveis fósseis e aumentar o de recursos renováveis,

– Reduzir as interações fortuitas e furtivas e melhorar a qualidade da conectividade geral,

– Reduzir a autosuficiência e melhorar a multiescalaridade e a governança multiníveis,

– Reduzir a predação nas cadeias de valor e aumentar a colaboração entre operadores,

– Reduzir as monoatividades e melhorar a gestão do risco pela multifuncionalidade,

– Reduzir a precariedade laboral e melhorar as condições de contratação e regulação.

Em resumo, à sombra de uma elevada conectividade e interatividade, e sem uma política regulatória adequada ao controlo estrito dos efeitos externos, corremos o risco de ficar reféns de muitos comportamentos furtivos, donde a relevância em tratar com extremo cuidado as questões de segurança das redes e a privacidade dos cidadãos.

 

Notas Finais

A pandemia da covid 19 acelerou a transição digital, mas, também, a posição relativa dos atores no quadro das novas comunidades inteligentes e suas cadeias de valor respetivas.

Todavia, como sabemos, a inteligência coletiva dos territórios não se reduz a uma operação simples de informatização ou digitalização. A teoria económica do desenvolvimento local e regional conta, aliás, com alguns bons exemplos de lógica concetual e inteligência coletiva.

Recordo algumas dessas referências teóricas: o distrito industrial, os meios inovadores, os recursos endógenos, os clusters, as fileiras e cadeias de valor, os sistemas e arranjos produtivos locais, todos eles, ou quase todos, expressando uma certa equação especifica de espaço, distância e tempo, mas, também, de integração dos efeitos internos e externos.

Agora, a revolução tecnológica e a inteligência territorial não só acrescentam a esta lista concetual o ecossistema digital, as redes, plataformas e aplicações, a inteligência artificial e os assistentes inteligentes, como reduzem bastante o lugar central desempenhado pelas variáveis espaço e distância, assim conferindo ao tempo uma outra racionalidade e centralidade, num contexto específico onde o risco linear dá lugar à oportunidade circular.

Finalmente, a economia digital obriga-nos a revisitar a teoria dos efeitos externos, por uma razão adicional, porque os visados ou as vítimas são os mesmos de sempre:

– O consumidor, por via de preços de monopólio ou quase-monopólio, de concertação de preços e abusos de posição dominante,

– O contribuinte, por via do planeamento fiscal agressivo, da evasão fiscal ou dos benefícios fiscais das grandes companhias tecnológicas,

– O trabalhador, por via da desregulação e desregulamentação do trabalho digital,

– O cidadão, por via da hipervigilância, da violação da sua privacidade e da ação abusiva dos algoritmos no funcionamento dos chamados mercados biface.

Por último, para monitorizar muitas das suas externalidades positivas e negativas, a economia da transição digital ganhará, seguramente, em integrar as comunidades inteligentes referidas no início no âmbito e escala da região-cidade, por via de uma rede de vilas e cidades mais policêntrica e circular e de uma estrutura de missão que cumpra bem o papel de curadoria territorial.

*Boas Férias ao leitor, regresso em Setembro.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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