As dinâmicas do espaço rural e o Dia da Terra

Doravante, pelo verde, o eco e o bio passarão todos os equívocos e todas as promessas do mundo rural

Comemorámos mais um Dia da Terra. Vejamos, a propósito, algumas dinâmicas mais recentes em espaço rural. No último século, as dinâmicas do espaço agro rural passaram por uma sucessão de ciclos de ocupação e utilização.

O ciclo camponês (o campo), o ciclo agrário (a exploração), o ciclo industrial (a fábrica), o ciclo biotecnológico (o laboratório), o ciclo agroecológico (o agroecossistema).

No princípio, a natureza impunha os seus próprios ritmos. Hoje, faz-se agricultura sem solo, sem sol e sem gente. Hoje, os ciclos agro rurais, por via do modelo dominante de natureza químico-mecânico-genética (QMG), estão a encurtar a sua relação umbilical com o ecossistema de origem, ou seja, a produtividade derivada, industrial e biotecnológica, dispensa cada vez mais a produtividade primária e a relação entre valores agrários e os valores naturais é cada vez mais artificial.

O corte nesta relação umbilical não só põe em perigo os recursos mais fundamentais, os recursos genéticos, como os recursos mais simbólicos, os recursos paisagísticos. Vejamos alguns aspetos desta dinâmica do espaço agro rural.

Os atores e o sistema e os seus conflitos de interesse

Na atual conjuntura, em plena pandemia, assistimos a uma mudança acelerada da relação de forças no mundo rural. Como facilmente se imagina, os valores relativos ao ordenamento do território, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agro rural entram muitas vezes em rota de colisão com a tentativa de privatização de alguns processos de ruralização em curso. Em presença, temos vários tipos de atores ou agentes económicos relevantes. Vejamos o nosso caso.

Em primeiro lugar, a tradicional micro e pequena agricultura, no contexto de uma economia de subsistência e funcionando de acordo com lógicas diversas de proximidade, por exemplo, os mercados locais e os circuitos curtos de comercialização.

Em segundo lugar, um grupo inorgânico recente movido por interesses difusos, ele próprio em busca de valoração social e reconhecimento público; trata-se de uma tipologia de procuras emergentes em redor de modalidades de turismo em espaço rural (TER), de produtos biológicos (BIO), de serviços recreativos (SER) e de produtos denominados (DOP), quase sempre um mix destas ofertas.

Em terceiro lugar, um grupo de promotores financeiramente poderosos, muitos deles fundos de investimento, quase sempre com vocação imobiliária e, quase sempre, tirando partido das fragilidades financeiras da agricultura e da floresta portuguesas.

Estou a falar, por exemplo, do arrendamento e compra de médias e grandes propriedades por parte de grupos empresariais, nacionais e estrangeiros, virados para a exportação de produções em regime de produção intensiva e superintensiva, mas, também, de investimentos energéticos, cinegéticos e turísticos em meio rural que exigem uma capitalização avultada.

Em quarto lugar, investimentos agroturísticos de grande valor patrimonial e paisagístico, quase sempre localizados em terroirs de reputação reconhecida, geralmente sob a designação de quintas, solares ou herdades.

Em quinto lugar, empresas agroindustriais já verticalizadas, seja na forma de cooperativa, organização de produtores, clube de produtores ou um qualquer tipo de agricultura sob contrato.

Aqui chegados, estão em curso distintos processos de ruralização que são, cada um a seu modo, outros tantos processos de privatização do espaço público rural e, portanto, fonte de muitos e novos conflitos de interesse.

Eis os principais: o rentismo imobiliário, a florestação industrial de terrenos agrícolas, a conservação extensiva de recursos naturais, a residencialização e a turistificação do espaço agro rural, a energetização de recursos renováveis, a reagrarização intensiva de precisão, a cinegetização de recursos agroflorestais, a terciarização do espaço para fins pedagógicos, recreativos e terapêuticos.

A nova economia rural em formação

Na próxima década avizinham-se grandes mudanças nas dinâmicas do espaço agro rural. As transições climática, energética, ecológica e digital reclamam da nova economia rural mais investigação, mais regulação e mais cultura do território.

Com efeito, não basta a cultura agroecológica para promover agroecossistemas, é fundamental uma cultura dos territórios que, aceitando o primado da mobilidade, não contribua, porém, para destruir o território, porque sem cultura identitária o território vira um espaço económico, liso, neutro, normalizado. É a lei da maior escala e do menor custo que domina. A lei do mundo plano.

É preciso contrariar a lei do mundo plano. A cultura identitária e simbólica dos territórios, os seus imaginários, mistérios, memórias e promessas, é o que permite salvar as pequenas economias locais e regionais, porque cria as preferências específicas e as ofertas correspondentes.

A barreira cultural e a investigação agroecológica dedicada são, portanto, as nossas barreiras naturais, aquelas que protegem a nossa “razão de ser”. Ao mesmo tempo, e à medida que o solo, a água e o clima se tornam mais raros e agressivos e o conhecimento e as tecnologias mais abundantes, uma nova economia rural irá emergir feita de agricultura de precisão, economia circular, agricultura regenerativa e serviços de ecossistema.

Nesta economia rural em formação, o plano verde dos territórios inteligentes será o principal sinal distintivo. No plano, os operadores biofísicos serão os novos lugares centrais:

– Nos edifícios: as coberturas verdes, as paredes verdes, os jardins e quintais, os terraços arborizados,

– Na rua: os passeios arborizados, as ciclovias, as ruas de uso múltiplo, a reabilitação de linhas de água,

– No bairro: as comunidades de produção de energia renovável, a bioregulação climática, as hortas urbanas, a floresta urbana e o bosquete multifuncional, os logradouros, os parques e jardins,

– Na cidade: a experimentação em agricultura vertical, os lagos biodepuradores e a compostagem urbana, a rede de ciclovias, a intermodalidade dos transportes, a integração de redes, a recolha das águas pluviais,

– No município: os corredores verdes intermunicipais, a mobilidade intermunicipal, os parques agrícolas urbanos e periurbanos para abastecimento local de alimentos, a construção de amenidades agroecológicas, recreativas e terapêuticas, a reabilitação dos ecossistemas e a promoção dos seus serviços.

Na nova economia rural em formação o programa de trabalhos para o próximo futuro é muito prometedor. Os objetivos gerais são os seguintes:

– Aumentar a produção de bens limpos rastreáveis;

– Aumentar a provisão de internalidades (redução de inputs externos);

– Aumentar a provisão de externalidades positivas sobre o meio ambiente;

– Aumentar os efeitos de linkage do sistema produtivo local;

– Aumentar os efeitos de capilaridade sobre os territórios envolventes;

– Aumentar a provisão de serviços de ecossistema;

– Aumentar a produção de capital social e simbólico.

Estes objetivos serão animados pelos vetores de inteligência coletiva que informam a nova economia rural em formação:

– O vetor verde ou ecológico: um leque muito variado de agriculturas cuja intensidade verde deverá estar de acordo com o seu gradiente ecológico;

– O vetor energético: um leque muito variado de agriculturas cuja intensidade energética deverá estar de acordo com os princípios de uma economia de carbono zero, de modo a gerar créditos verdes para a agricultura;

– O vetor biotecnológico: um leque muito variado de agriculturas cuja intensidade biotecnológica deverá estar de acordo com os princípios da precaução e da prudência, pois tanto poderemos assistir à chegada de uma semente transgénica que agride um território já desfavorecido como à introdução de uma inovação agroecossistémica que recupera e regenera solos agrícolas que se julgavam perdidos para sempre;

– O vetor recreativo: um leque muito variado de agriculturas recreativas cuja intensidade deverá estar de acordo com um novo mapeamento dos territórios de recreio e lazer em espaço rural; diferenciação e promoção de novos públicos e ordenamento dos territórios que corresponda a essas expectativas são as duas tarefas principais;

– O vetor dos serviços ecossistémicos: um leque muito variado de agriculturas de serviços cuja provisão de bens e serviços se poderá classificar em quatro grandes categorias: produtivos, de suporte da atividade, de regulação da atividade e de conforto sociocultural.

Notas Finais

Ao contrário do que nos ensinaram, durante muitas décadas nas escolas do pensamento dominante, a ruralidade não está definitivamente ultrapassada. Doravante, a ruralidade é um modo de vida, em simbiose com a natureza, não um modo exclusivo de produção. Deixou de estar reportada a um sistema produtivo, converteu-se num modo cultural por excelência.

O advento da economia imaterial e colaborativa é, por isso, uma grande oportunidade para as convencionais cadeias de valor materiais. É uma oportunidade para as regiões mais pobres em recursos materiais.

As apelações de património imaterial por parte da UNESCO são disso um bom exemplo, uma vez que alargam mais ainda a quantidade e qualidade dos sinais distintivos territoriais disponíveis.

A grande questão que fica por resolver é a qualidade do capital social, isto é, a emergência de atores-rede que sejam capazes de conciliar “ordem com inteligência e imaginação”, em benefício dos territórios rurais mais desfavorecidos.

Neste contexto, é imperioso que encontremos um novo contrato social para a agricultura e os seus agroecossistemas no quadro dos sistemas produtivos locais e das unidades de paisagem em que se integram. As agriculturas locais e regionais de que falamos deverão ser financiadas por um combinado de “mercado, transferência e contrato”.

Conceber e configurar este financiamento a três dimensões não é tarefa fácil, mas nele reside o segredo da sustentabilidade destas agriculturas locais e regionais.

O mundo rural é, hoje, um jogo de sombras e uma encruzilhada onde se cruzam perceções e representações de mundos trocados.

Cada uma destas representações cria a sua verdade, o seu arsenal de propaganda, ideias simplistas e imagens desfocadas sobre o mundo rural.

Por outro lado, são estas mesmas representações, práticas e teóricas, que criam as novas procuras e os mercados emergentes que atravessam em todas as direções o espaço rural. A mudança é irrecusável, o espaço rural deixou de ser um espaço-produtor para ser um espaço-produzido.

Todos os dias, os meios de comunicação social nos fazem chegar estas incursões urbanas em meio rural, como casos de sucesso fulgurante, devidamente acompanhados de elementos publicitários que visam passar a imagem da moda. Doravante, pelo verde, o eco e o bio passarão todos os equívocos e todas as promessas do mundo rural.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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