Há dias assim, em que queremos fazer mais

Faz hoje um ano que a equipa do Centro Ciência Viva de Lagos teve nas mãos a primeira viseira aí produzida

O Centro havia fechado há já dias.

Era sábado, e estávamos amarrados a casa. Lá fora, apenas uma carrinha circulava a ensurdecedora mensagem de que deveríamos ficar amarrados em casa. Avisos não de um bombardeamento, não de um ataque eminente, apenas que deveríamos ficar em casa, porque ele andava nas ruas, nas lojas, em todo lado.

Quem?

O vírus, de que tão fartos estamos de falar, discutir, de recear, enfim, o vírus. O da pandemia.

Nada sabíamos e tudo receávamos.

Era sábado, 21 de março, e tinha uma viseira completa em cima da mesa e era das coisas mais bonitas, mas ao mesmo tempo mais banais, de que hoje me lembro. Um objeto, nada mais do que isso. Este último ano, foram 10 anos para a memória de um homem.

Um telefonema com Ricardo Mexia foi o que desencadeou esta ideia. Havia um grupo de voluntários que andava a imprimir viseiras, suportes feitos em impressoras 3D.

Ele lembrava-se das nossas impressoras, de quando tinha estado no Centro para uma palestra sobre o vírus, em finais de fevereiro. O projeto de voluntariado era o 3D Mask Portugal, liderado pelo Rúben Borges, com quem haveria muito de falar, de desabafar, mais do que com alguém que nunca estive pessoalmente.

Chateá-lo a ele e a parte da minha equipa foi o passo seguinte. Era possível, disse-me a minha equipa. O Rúben também. E tínhamos de arranjar elásticos para prender as viseiras, numa altura em não se falava sequer de máscaras, apenas de viseiras, as barreiras que os médicos e enfermeiros pediam.

O Hélder, o Pedro e a Helena modificaram e otimizaram o modelo criado por outros.

Misturaram elásticos de retrosaria e folhas de policarbonato, onde já se viu isto? Levaram as impressoras para casa, no Centro estavam ociosas. Puseram a CNC do Centro a cortar as viseiras, que não eram tempos de descanso.

Andaram a pedinchar metros de elásticos, senhoras de retrosarias de porta fechada em Lagos, emocionando-as quando descobriam para que raio eram os elásticos. E para que eram? Para amparar as viseiras nas cabeça de quem teria preferido não ver o que lhes entrava pelas enfermarias adentro.

Esgravataram contactos de gráficas de Lagos e arredores, angariando folhas transparentes, numa altura em que estavam esgotadas no país inteiro.

Voluntariou-se gente que tinha impressoras em casa, fazendo a logística de distribuição dos restantes materiais.

Os dois Hs e o P, do Centro, criaram linhas de montagem, nas suas casas, de impressão de suportes, de corte das folhas, de montagem dos elásticos, do empacotamento dos produtos finais, e andaram a distribuí-las pelos profissionais de saúde, quais caixeiros-viajantes, numa altura em que as viagens desapareciam das nossas vidas.

Houve reencontros com enfermeiras que haviam sido alunas em tempos idos. Houve distribuição de viseiras em estacionamentos de hipermercados, a médicos e enfermeiros, contactos ainda sem máscara, porque elas ainda estavam longe de se arreigarem aos nossos dias. Eram apenas viseiras, mas desejadas viseiras.

Houve muitos telefonemas de recusa para Lares da Terceira Idade, porque o Centro decidiu apenas entregar as viseiras a profissionais de saúde. Foi muito difícil viver com esta opção e desligar a gente desesperada, mas temíamos que se as entregássemos a lares corríamos o risco de desencadear um fogo incontrolável. Os profissionais de saúde saberiam como as desinfetar, foi a nossa decisão.

Houve empresas que ofereceram material. Houve discussões com quem a enorme vontade de ajudar não deixava ver que todos éramos poucos.

Houve, houve, houve, e felizmente a partir de uma determinada altura deixou de haver a necessidade, deixámos todos, os que connosco colaboraram e a equipa do Centro, os dois Hs e o P, deixámos de ser precisos.

O que não nunca vamos deixar é de manifestar o enorme agradecimento aos profissionais de saúde que, ao cuidarem de todos durante o inferno, nos ajudaram também.

A sentirmo-nos úteis e a manter a saúde mental.

Tudo o resto são muitas histórias para contar aos netos.

Não são nada de especial, mas são as nossas histórias, de quando precisaram de nós e tivemos a capacidade e oportunidade de ajudar.

 

 

Autor: Luís Azevedo Rodrigues é diretor executivo do Centro Ciência Viva de Lagos

 



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