Fratelli tutti? Só alguns? Ou uns mais que outros?

Revolucionários de trazer por casa…. É verdadeiramente o que são os protagonistas destes movimentos e seus seguidores, que não olham ao essencial

George Orwell escrevia, em 1943/4, um livrinho que não viria a ser logo editado. Numa fábula a que deu o nome de Animal Farm (e que seria traduzido para o português como O Triunfo dos Porcos), conta como os animais de uma quinta, revoltados com o tratamento recebido do proprietário, o resolvem expulsar.

Liderados pelos porcos, durante algum tempo tudo na quinta funciona bem: trabalham em prol de todos e todos são tratados com justiça. Mas, com o decorrer do tempo, os porcos, que assumem a liderança, acabam por se beneficiarem a eles mesmos e a ter muito mais vantagens que os outros, em tudo. «Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros», passa a ser o slogan da quinta.

Pensada para retratar aquilo que Orwell considerava ser o pior da revolução soviética, esta história acabaria por se tornar um dos mais conhecidos e citados livros sobre política do século XX e perdura, na História da Literatura, como um clássico.

Perdura, igualmente, como uma metáfora daquilo que acontece em grande número de regimes políticos, ou que dá sustentação a ideologias que alguns consideram ser o topo de gama deste tipo de atividade e que, por norma, tendem para os extremismos e para serem consideradas revolucionárias.

Defendem, dizem, os mais desprotegidos, os que precisam de maior apoio social, de maior respeito, de maior dignidade. Argumentam, vociferam e arregimentam apoiantes, normalmente os descontentes com os mais moderados dentro das democracias.

Demagógicos e populistas, concentram as atenções de algumas franjas do povo, que usando o seu digno senso comum, os vê como justiceiros contra os corruptos e enganadores políticos.

Portugal não é exceção. Convivemos, na atualidade, com algumas forças políticas que são exemplo disto: uns defendem aguerridamente os direitos das minorias (raciais, imigrantes, refugiados, comunidade LGBTI+); dos trabalhadores que não podem de modo algum ser despedidos pela “corja dos patrões”, que só existe para os explorar; dos que são prejudicados pela imensa crise gerada pela COVID-19.

Do outro lado, atiram-se contra os subsídio-dependentes, contra os que vieram de países distantes roubar os lugares de trabalho dos nacionais e demais minorias; defendem medidas radicais para punir criminosos, como a castração química e outras que tais.

Curiosamente, também são fervorosos defensores dos prejudicados pela imensa crise gerada pela COVID-19. Todos se preocupam com causas e coisas, com temas e atualidades, com debates e palavreado, que é sempre abundante, retórico, inflamado.

E atacam-se, com gestos e frases que só os deixam um pouco mais farruscos: «Na Guiné é que estava bem» … «Vai pagar o preço “de um amendoim”» … E tantos, tantos outros “tesourinhos deprimentes”, como iriam dizer os Gato Fedorento.

Mas onde está verdadeiramente a revolução em tudo o que propõem? Onde?

O Papa Francisco, num documentário realizado pelo conhecido cineasta Wim Wenders (intitulado Pope Francis: A Man of His Word, 2018), regressando àquilo que o inspira desde o momento em que escolheu para seu nome papal Francisco (o nome do Santo de Assis que viveu na pobreza e ao lado dos pobres, defendendo a justiça, a natureza, a igualdade), fala de uma revolução que é indispensável, que é “a revolução”: sermos um pouco mais irmãos uns dos outros e, também, um pouco mais pobres em tudo.

Esse ato de encontrar no outro um irmão, de sermos Fratelli Tutti – Todos Irmãos (como nos diz na sua última Encíclica), é a única e real revolução de que precisamos e que, nestes movimentos políticos, não vislumbramos.

Neles, vemos o que Francisco define como uma «luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir» (Fratelli Tutti, 16) e que nos impede de «levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada».

Reconhecer o próximo, dizem os cristãos. Por isso, pergunto: nesses extremismos, qual é o lugar dos pobres? E qual é o lugar do diálogo, da escuta? Qual é o lugar da verdadeira esperança na construção de um futuro melhor?

De novo cito o Papa (Fratelli Tutti, 48): «Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude recetiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas «o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo (…). Às vezes a velocidade do mundo moderno, o frenesim impede-nos de escutar bem o que outro diz. Quando está a meio do seu diálogo, já o interrompemos e queremos replicar quando ele ainda não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta».

São Francisco de Assis «escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida».

Fratelli tutti? Só alguns? Ou uns mais que outros? Revolucionários de trazer por casa…. É verdadeiramente o que são os protagonistas destes movimentos e seus seguidores, que não olham ao essencial, que, como na Animal Farm de George Orwell, depressa se esquecem que todos nascemos com direitos iguais e com igual necessidade de respeito. E que,na diversidade, está a maior das riquezas.

Esquecem que a misericórdia é a nossa verdadeira e derradeira herança humana: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36). E que, se só na lua não há vento, dentro de cada um de nós há, se assim o quisermos, uma capacidade infinita para o amor, o amor total, verdadeiro, que nos define como humanos e que podermos, devemos transformar num estilo de vida.

 

Autor: o Padre Miguel Neto é diretor do Gabinete de Informação e da Pastoral do Turismo da Diocese do Algarve, bem como pároco de Tavira

 

 

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