O Brasil não pode aceitar

Fundamentos para julgar Jair Bolsonaro por crime contra a humanidade

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, no passado dia 11 de março, a situação de pandemia do novo coronavírus, chamado de Sars-Cov-2, causador da doença Covid-19.

Uma decisão como esta é, como se compreende, fruto de um processo de enorme ponderação científica, social e política, como forma de evitar situações de pânico ou alarmismo desnecessárias.

Decretar uma situação como esta depende não apenas do número de casos detetados e da capacidade de contágio, mas sobretudo do nível de disseminação geográfica do vírus, que no caso presente é, como se sabe, a todos os níveis impressionante.

O anúncio da OMS serve essencialmente de alerta para que todos os países, sem exceção, ativem planos de emergência para responder ao problema, diagnostiquem os casos suspeitos, isolem e tratem os pacientes infetados, e previnam a propagação, reduzindo ao máximo os ciclos de transmissão do vírus.

Todas estas medidas visam conter o Sars-Cov-2 e travar a expansão da pandemia, evitando, assim, a sobrecarga sobre os sistemas de saúde, para que estes consigam manter o controlo da situação. Adotar todas as medidas preventivas e de contenção ao alcance dos Estados, no mais curto espaço de tempo, é determinante para defender a vida humana, manter as respostas de saúde com bons níveis de atuação e reduzir os impactos negativos no emprego e na economia.

Existe, como se compreende, uma responsabilidade individual em tudo isto, na medida em que o comportamento de cada pessoa é uma variável determinante na prevenção do contágio, tendo sido amplamente divulgadas as atitudes que todos devemos adotar no atual contexto.

Perante uma situação tão adversa como este, Chefes de Estado em todo o planeta têm vindo a tomar medidas inéditas, muitas delas impopulares, com o objetivo de salvar vidas, proteger os sistemas de saúde e reduzir ao máximo os impactos negativos sobre o emprego e a economia.

Não há receitas perfeitas e nem caminhos únicos para resolver este problema, mas existe um consenso generalizado, mesmo entre os líderes políticos mais hostis, sobre a necessidade de reorganizar a sociedade no mais curto espaço de tempo, remetendo para o confinamento social uma boa parte da população e mantendo em funcionamento apenas os serviços imprescindíveis à sobrevivência humana no atual contexto de pandemia.

Pelo que se tem observado um pouco por todo o mundo, a vida é nesta altura o bem mais precioso e a sua salvaguarda sobrepõe-se à defesa da economia. Como bem sabemos, nem sempre foi sido assim.

E no Brasil, como se tem comportado Jair Bolsonaro na gestão desta crise? São inúmeros os adjetivos que me ocorrem para classificar a sua atuação e a sua pessoa, e infelizmente não encontro um que seja abonatório. A primeira conclusão a retirar é relativa à sua impreparação para desempenhar o cargo de Presidente da República.

Na realidade, essa constatação é antiga, embora agora as evidências sejam mais expressivas, mesmo para muitos dos que nele confiaram e nele depositaram o seu voto nas últimas eleições.

Os apelos de Bolsonaro à população para que saia de casa e continue a trabalhar, bem como as diretrizes para manter os aeroportos, as escolas e muitas outras instituições a funcionar normalmente, contrariam as indicações da OMS, a atuação de muitos Chefes de Estado e as medidas e recomendações de outros membros do Governo brasileiro.

 




 

O pronunciamento ao país e as repetidas declarações públicas que minimizam os riscos relacionados com a Covid-19 são o reflexo da sua ignorância e da sua total irresponsabilidade. Bolsonaro nega as evidências da ciência e os dados comprovados de inúmeros países afetados pela pandemia, numa atitude de total cegueira, proferindo frequentes afirmações contraditórias e incendiárias.

À crise sanitária que o país atravessa, o ainda Presidente da República do Brasil acrescentou uma crise política e institucional, ao abrir uma “guerra” completamente desnecessária com governadores, prefeitos e membros do seu próprio governo, que numa atitude responsável tentam travar a expansão do novo coronavírus.

A pandemia da Covid-19 tem servido de argumento, mais um, para Bolsonaro continuar a suas acusações à oposição democrática e aos órgãos de comunicação social brasileiros. Culpabiliza-os pelo fomento de um clima de histeria, proferindo afirmações no mínimo inacreditáveis para um Presidente da República, como as que defendem que o brasileiro deve estar estudado, porque “o cara pula em esgoto, sai, mergulha e não pega nada”, ou “pior do que o coronavírus é a mídiavírus”.

Tais afirmações são irresponsáveis e perigosas porque incitam os mais jovens e os mais saudáveis a desrespeitar o distanciamento e o confinamento social, colocando em risco a vida de milhares de pessoas.

Bolsonaro mostrou não conhecer o país que preside, pois tem ignorado as deficiências do sistema de saúde, bem como as situações de pobreza e insalubridade que abrangem uma boa parte da população. Essas constituem ameaças muito sérias ao agravamento da epidemia na maior nação da América Latina.

Ciente das inúmeras dificuldades do povo brasileiro que dependem do seu trabalho, este é, no entanto, o momento de privilegiar a vida, mesmo que com impactos negativos na economia. A vida é um bem maior e irrecuperável depois de perdida, enquanto que a economia sempre viveu ciclos de crescimento e de crise.

O Presidente brasileiro tem demonstrado reiteradamente o seu desrespeito pela população ao proferir um discurso da de morte, desvalorizando a perda de “algumas” vidas humanas como algo necessário para salvar a economia. É errado pensar que apenas os mais idosos podem sucumbir a esta doença, mas mesmo que assim fosse, esse nunca poderia ser um mal menor para um Chefe de Estado. A atitude de Bolsonaro representa a falência moral da política e do cargo que desempenha.

O que está em causa não é a sobrevivência do seu mandato, como alguns referem. Esse na prática já terminou! Bolsonaro é desautorizado pela sua conduta incendiária e criminosa. O próprio é neste momento uma ameaça à saúde pública.

Com a sua atitude, Bolsonaro fomenta a expansão do vírus e contraria o esforço de todo o planeta. A sua responsabilidade sobre esta matéria ultrapassa, assim, as fronteiras brasileiras, pois bem se sabe que a doença deve ser travada em todas as latitudes, como forma de evitar a emergência de novos focos e a disseminação descontrolado do vírus.

A nível internacional, Bolsonaro revelou mais uma vez a sua dupla faceta. Por um lado, mantém a incapacidade diplomática na relação com inúmeros países, como o fez desta feita com as afirmações preferidas sobre a Itália. Por outro lado, comporta-se como um ser domesticado que obedece às ordens do seu dono, neste caso Donald Trump, funcionando como eco ou caixa-de-ressonância de todas as enormidades proferidas pelo líder da Casa Branca.

O Brasil precisa de uma liderança séria, lúcida, responsável e comprometida com a vida. Bolsonaro é a negação de tudo isto. Esse prefere o ataque à conciliação; privilegia o conflito em detrimento do consenso; favorece a ignorância em prejuízo da ciência; transforma opositores democráticos em inimigos de guerra; acentua as acusações evitando o diálogo; prefere a divisão social sabendo que essa fere a unidade nacional.

O Brasil não pode aceitar um Presidente que se comporta desta forma. Os seus atos são condenáveis, sendo perfeitamente justificável julgar Bolsonaro por crime contra a humanidade.

Não apenas evitou defender o isolamento social, como medida para travar o contágio alargado do seu povo, como apelou aos brasileiros para continuarem a trabalhar, chamando de “covardes” aos que ficam em casa. Numa das suas muitas afirmações surreais, o Presidente brasileiro defendeu que “remédio para o vírus é o trabalho”.

Esta postura, amplamente suportada por provas, descreve um ato deliberado e reiterado do Presidente da República contra o seu povo, sobretudo os mais frágeis e indefesos, pressionando-os a enfrentar um risco de vida sem meios de defesa pessoal.

Trata-se de um crime de Estado, por ser cometido pelo próprio Chefe de Governo, num período de paz, sujeitando a sua população a um processo de experimentação humana, com vista a alcançar uma possível mas não comprovada imunidade comunitária, sem meios científicos que sustentem essa tese e assumindo que a morte de “alguns” é algo necessário.

O Brasil Não Pode Aceitar!

 

Autor: Nelson Dias é sociólogo e consultor do Banco Mundial

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