As economias de rede, dos eventos e da visitação

A economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, feiras e festivais

Os territórios são construções sociais longas e delicadas que atravessam muitas vicissitudes e contrariedades. O seu capital social é fruto dessa história vivida e dessa sociabilidade histórica muito particular e é dessa experiência histórica concreta, mais ou menos intensa, que se geram, emergem e estruturam os recursos e os ativos de um território.

Hoje, em plena revolução digital e mergulhados no universo das redes, dos eventos e da visitação, para que um qualquer recurso se transforme num ativo deveremos perguntar: qual é o ecossistema cultural e criativo onde se integra, qual é a economia de aglomeração onde está inserido, qual é a forma de inteligência coletiva que lhe assiste? Multiplicam-se, assim, os espaços de coworking, os tiers-lieux, os hub, as factories, as residências, as incubadoras e aceleradoras empresariais de todo o tipo.

O universo material e simbólico de uma região contém muitos “signos distintivos territoriais”, muitos deles ocultos, subestimados ou ignorados.

O mosaico agro-silvo-pastoril e paisagístico do montado, os sítios da rede natura 2000 e as áreas de paisagem protegida, a biodiversidade, os endemismos e os serviços ecossistémicos, as fontes e as minas de água, as amenidades paisagísticas e os percursos de natureza, as denominações de origem protegida (DOP) e os nichos de mercado, as apelações de património imaterial da UNESCO, o estatuto de “reserva da biosfera”, os campos arqueológicos, os monumentos, as vistas panorâmicas, a cultura tradicional, a literatura oral e as paisagens literárias, são exemplos de signos distintivos que podem contribuir decisivamente para a construção da imagem de marca impressiva de um território.

O grande desafio que se segue, é, para lá da nomenclatura estatística (NUTS) ou da divisão administrativa, a descoberta e a promoção de uma geografia desejada, a busca de sentido e significado, que nos devolvam o território como “paisagem orgânica global”, como “território-ser vivo”, capaz de inteligência coletiva e, portanto, de uma direção e linha de rumo determinada.

 

A economia das redes, dos eventos e da visitação

Com mais recursos à nossa disposição, materiais e imateriais, trata-se, agora, de conceber e realizar uma malha fina, capilar e delicada de pequenos empreendimentos muito bem articulados entre si. Os exemplos que se seguem, são outras tantas configurações sociais de territórios-rede. Em cada caso, é essencial nomear um grupo de missão, acrescer a sua intensidade-rede e sociabilidade, as suas economias de rede e aglomeração, enfim, marcar os seus sinais mais distintivos e a partir deles construir novos territórios simbólicos e novas variações materiais. Sem eles, e sem a malha que eles constituem, não haverá uma verdadeira interligação de territórios-rede e, portanto, uma genuína valorização do interior.

1) A construção social de um “sistema alimentar local (SAL)”
Três grandes objetivos – a descarbonização, o abastecimento local e a economia circular – podem levar uma rede de vilas e cidades, em articulação com uma escola superior agrária, por exemplo, a conceber um “sistema alimentar local” (SAL); por via de uma rede de circuitos curtos, o ator-rede organiza a produção e o comércio local de produtos alimentares de proximidade e, ao mesmo tempo, aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes da estrutura ecológica intermunicipal.

2) A construção de uma “denominação de origem protegida (DOP)”
Um parque natural, um sítio da reserva natura 2000, uma amenidade paisagística podem constituir um excelente exemplo de território-rede; em conjunto com os atores locais e regionais propõem-se modernizar o sistema produtivo do parque ou área protegida, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma denominação de origem protegida (DOP) ou indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo.

3) A construção ou requalificação de um “mercado ou segmento de nicho”
No quadro da sociedade sénior e do turismo de saúde e bem-estar, por exemplo, é possível conceber e criar uma pequena economia de aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais junto de um empreendimento turístico ou de uma zona termal, em associação com os atores locais; em conjunto, propõem-se requalificar vários empreendimentos turísticos e aldeamentos adjacentes e criar um nicho de mercado, por exemplo, um novo espaço para o “turismo acessível, terapêutico e recreativo”.

4) A construção de um “complexo juvenil com campo de trabalho, férias e aventura”
Na área de influência de um lago, de uma albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, é possível conceber e criar uma pequena economia de aglomeração de atividades turísticas, recreativas, desportivas e terapêuticas em redor de um complexo agroturístico com campo de férias e aventura; os operadores propõem-se lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclui a participação dos visitantes nas práticas tradicionais e a colaboração de voluntários em campos de férias, trabalho e aventura; as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, mas, também, as aldeias de xisto ou as aldeias históricas, podem ser a retaguarda ideal para este território-rede.

6) A construção de uma “marca coletiva” para o lançamento de uma gama de produtos
Uma sub-região que foi objeto de investimentos públicos significativos, por exemplo na área dos regadios, uma união de cooperativas ou uma associação de agricultores, um clube de produtores em associação com uma rede de distribuição alimentar ou rede de supermercados, podem associar-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de modernização agrária e comercial com o objetivo de lançar uma marca coletiva que seja representativa daquele território-rede.

7) A construção de um “sistema ou mosaico agroflorestal (SAF)”
Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de paisagem protegida, as empresas agroflorestais, uma escola superior agrária, as comunidades humanas implicadas, podem associar-se para constituir um “sistema agroflorestal (SAF)” ou mosaico agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta.

8) Criação ou reforço de um “centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística”
Em áreas ardidas, por exemplo, um centro de investigação na área da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agroflorestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, podem propor-se a criar um programa de investigação-ação tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria de serviços ecossistémicos e a valorização comercial destes ativos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos.

9) A construção de um “parque biológico e ambiental em zona de montanha”
As associações de desenvolvimento local em cooperação com uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissional agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias serranas, os operadores de turismo de natureza e aldeia, propõem-se criar uma espécie de “amenidade exemplar” que seja um local de visitação e recreio mas, também, de aprendizagem das técnicas de engenharia biofísica, ecologia da paisagem e reabilitação de habitats; para além disso, propõem-se lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas e de montanha; os geoparques são aqui um campo de aplicação por excelência.

10) Um “Parque Agrícola Intermunicipal” com objetivos de inclusão social
No campo da ação social, um projeto intermunicipal, associativo ou comunitário, que junte, por exemplo, as instituições particulares de solidariedade social (IPSS), o instituto de emprego e formação profissional (IEFP), uma escola superior agrária, tendo em vista a reinserção social em sentido amplo, a formação profissional e a realização de contratos de “institutional food” para abastecimento de escolas, prisões, hospitais, quartéis, lares; no campo da ação pedagógica, recreativa e terapêutica, o parque pode funcionar como uma quinta pedagógica e terapêutica dirigido aos grupos mais vulneráveis da população com necessidades especiais, que junte as IPSS, os serviços hospitalares, a universidade, as ordens profissionais e os centros de investigação, tendo em vista a provisão de serviços médicos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos, mas, também, ambientais que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida dos grupos mais sensíveis de população.

Notas Finais

Em todos os exemplos referidos, o propósito é sempre o mesmo: uma ação coletiva inovadora sob a forma de economia de rede, um grupo de missão e um ator-rede inteligente, a valorização de recursos em risco e expectantes, a formação de uma cadeia de valor que seja, enfim, a imagem de marca do território.

No rural tardio português, a melhor solução para as zonas rurais desfavorecidos é a sua delimitação territorial por via de redes de pequenas e médias vilas do interior.

Este policentrismo da rede põe em contato não apenas as diversas zonas empresariais locais, mas, também, as estruturas ecológicas municipais e os corredores verdes respetivos e permite um planeamento mais eficaz de “infraestruturas comuns e novas economias de rede e aglomeração”.

Desta forma, teremos mais cidade no campo e mais campo na cidade. Por outro lado, a digitalização do território permite-nos acrescentar “realidade aumentada e virtual” ao território existente e alargar, por essa via, a simbologia dos sinais distintivos territoriais que estão na base de uma “geografia desejada”.

A economia das redes, dos eventos e da visitação é fundamental para o desenvolvimento da região algarvia. Todavia, à medida que se intensifica, a turistificação do Algarve, muda, também, a natureza e a lógica de funcionamento da economia algarvia.

Esta aceleração provoca uma perversão grave na afetação dos recursos regionais e tudo, ou quase tudo, fica dependente do custo de oportunidade face ao turismo. Seja o consumo de água, o uso do solo, os percursos de natureza ou a patrimonialização dos recursos culturais, “tudo está obrigado a render” no mais curto espaço de tempo, o tempo curto do turismo.

Com efeito, como o turista é um passageiro eventual, com um tempo limitado para “explorar e ser explorado”, a economia das redes, os eventos e a visitação, são organizados para patrimonializar tudo o que possa servir de experienciação a esse turista.

O risco implícito, mas iminente, é a falta de uma ética do cuidado na utilização criteriosa de recursos escassos e sensíveis, como são a água, o solo, o património.

Por isso, a minha insistência na ideia-base de uma “curadoria de interiores”, de um código de boa conduta e boas práticas, não apenas para subir na cadeia de valor da programação territorial, como para ir em busca de uma “geografia desejada” inspirada nos sinais distintivos territoriais, muito para lá das nomenclaturas estatísticas e administrativas que hoje dividem e confundem o país.

Em especial, a economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, feiras e festivais, numa vertigem consumista e num “presentismo” que impedem a integração destas celebrações em “atos orgânicos” de estruturação longa da economia local e regional. Só uma ética do cuidado e uma adequada curadoria territorial estarão à altura deste grande desafio intergeracional.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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