McDonald’s Mediterrânico

Não é que festas e celebrações sejam más, mas de que serve andar a propagandear uma dieta mediterrânica enquanto se permite a morte e substituição da paisagem e dos sistemas produtivos e culturais que a abastecem?

Decorre em Tavira, por estes dias, a VI Feira da Dieta Mediterrânica, celebrando e promovendo este regime alimentar e gastronómico enquanto Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

Num discurso de abertura, o secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural, o “nosso” Miguel Freitas, deixou algumas ideias de força relativamente a este tema.

Desde logo, que a Dieta Mediterrânica é conceito com capacidade para verdadeiramente projectar Portugal a nível internacional, pela autenticidade que comporta, pela identidade que traduz, pelo que de nós conta. Não apenas enquanto um catálogo de produtos e produções, mas também como factor determinante para a preservação das paisagens.

Miguel Freitas não deixou de reconhecer a metamorfose profunda e silenciosa que, longe do alarido do Algarve litoral, está a transformar decisivamente o rosto mais genuíno da região. Concretamente, através da progressão das culturas com recurso a estufas, sistemas intensivos e um aumento generalizado do regadio.

Defendeu mesmo que temos que fazer escolhas – e, consequentemente, trabalhar de acordo com elas – para saber se o rumo futuro que pretendemos para o Algarve é o dessa transformação ou se optamos pela preservação dos traços mediterrânicos que vivem, ainda hoje, nas paisagens caracterizadas pelo pomar de sequeiro e sistemas associados.

O secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural é uma pessoa de elevada competência, possuidor de um pensamento coerente e bem organizado nestas matérias. No entanto, este seu discurso é traído pela distância que o separa da realidade.

Concretamente, do que tem sido a actuação – ou falta dela – das entidades regionais com a tutela da agricultura e da paisagem, em termos de análise crítica dos processos de descaracterização que vão proliferando, problema que, de resto, ninguém parece querer ver.

Ao ponto de todas as comemorações em torno da Dieta Mediterrânica parecerem ser processos de obstinado alheamento relativamente aos graves problemas e ameaças que as paisagens de suporte deste autêntico modo de vida enfrentam, quase ao estilo de um livro de auto-ajuda territorial.

Não é que festas e celebrações sejam más, mas de que serve andar a propagandear uma dieta mediterrânica enquanto se permite a morte e substituição da paisagem e dos sistemas produtivos e culturais que a abastecem?

Ou será que o doce típico algarvio, em linha com a pergunta colocada pela iniciativa do Manifesto das 3 Delícias, trocando o figo, a alfarroba e amêndoa pelo abacate, pela manga e pela framboesa, continua a ser verdadeiramente mediterrânico?

É então necessária uma acção concreta por parte do Estado, assumindo um papel regulador e de valorização efectiva, no quadro desta falada importância estratégica do carácter mediterrânico dos sistemas produtivos.

Porque é à Administração Pública que compete a ponderação e gestão dos interesses particulares com o interesse público, materializado nos valores ecológicos, sócio-culturais e económicos inscritos na paisagem mediterrânica. Há portanto que proteger esses valores, mas trabalhando simultaneamente com os promotores do sector primário (de que tanto necessitamos) para encontrar soluções ecológica, social e economicamente viáveis para materialização das suas intenções.

Não há maus da fita nesta história. O sector primário deve ser uma das apostas da região e há espaço para culturas diversificadas no contexto da agricultura regional.

Insisto na ideia de que, tal como no sector florestal, a posse e manutenção das terras acarreta custos, que obrigam à geração de receitas para lhes fazer face e, obviamente, gerar mais-valias económicas através da produção, que trabalhar para aquecer não é ideia sedutora.

No entanto, fazê-lo à custa da implementação de sistemas baseados em elevados inputs de energia e recursos (água, fertilizantes, pesticidas, fitossanitários, etc.) em detrimento de sistemas ancestrais, altamente adaptados às condições de clima, solo e disponibilidade de água socializa os custos de uma forma insustentável, ainda para mais num quadro de Alterações Climáticas que nos coloca perante crescentes desafios ao nível da disponibilidade desses mesmos recursos.

Perante tudo isto, é fundamental uma afirmação e acção política efectiva, a nível local, regional e nacional, contrariando o ambiente de omissão e demissão decisória. Para lamber mecânica e acriticamente listas de requisitos não precisamos de tanta entidade, técnicos e, ironicamente, decisores.

A Convenção Europeia da Paisagem, a Política Nacional de Arquitectura e Paisagem e demais instrumentos legais e políticos de salvaguarda não podem continuar a ser ocos bibelots regulamentares, que enfeitam este alegre McDonald’s mediterrânico, em que tudo enche o olho, parece bonito e apetitoso, até engorda, mas depois de comido, o valor nutritivo é bem reduzido e causa mais dano do que benefício.

Caso nada seja feito, bonitas e acertadas palavras como estas que foram proferidas, vão acabar por servir como irónico obituário da paisagem algarvia tradicional.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP), vice presidente da Direção Nacional da Liga para a Proteção da Natureza (LPN).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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