Adão e Eva usavam colares de conchas furadas

Não há estátuas, nem moedas, nem cerâmica, nem muros. Os primeiros homens eram despojados, frugais e as suas atividades quase […]

Não há estátuas, nem moedas, nem cerâmica, nem muros. Os primeiros homens eram despojados, frugais e as suas atividades quase não deixaram vestígios. Lino André procura vislumbres da vida dos primeiros homens que habitaram o Algarve há 32 mil anos.

Lino André é arqueólogo e faz investigação científica no Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve. Passa grande parte dos seus dias no laboratório J24, num pré-fabricado de madeira rodeado de pinheiros-mansos. Faz lembrar os bungalows de um parque de campismo, ouve-se os pássaros e o som dos ramos que abanam com o vento. Cheira a mato.

Cada vez que chegam da escavação, os investigadores trazem caixas e caixas de pequenos torrões castanhos, que ficaram retidos nos crivos, mas não sabem se são partes do solo ou algo mais. Só quando é feita a lavagem é que começam a aparecer os achados. «São horas por dia a lavar pequenos fragmentos. Por cada dia de escavação, são três dias a lavar e etiquetar no laboratório», conta Lino André.

A tarefa que mais agrada ao investigador é sentar-se em frente a uma mesa cheia de centenas de pequenos fragmentos limpos e separá-los por matéria-prima. «Isto é osso, isto é concha, isto é lítico [pedra]», mostra Lino André, segurando pequenos fragmentos à vez, à medida que os vai colocando sobre pedaços de jornal rasgado. O que parece um processo fastidioso é, para Lino, uma contínua descoberta. «Quando se trabalha em escavações no Paleolítico Superior, este é o tipo de indício que temos».

Ao juntar os saquinhos cheios de pequenos fragmentos de osso, Lino André percebe que os habitantes da zona naquela época comeram mais coelho do que no nível que escavaram no ano passado. «Noutras alturas, aparece mais berbigão. Também caçavam um boi enorme que existia na altura, o auroque», explica. «Temos encontrado ossos de muitas espécies, em especial cavalo e veado, mas também urso, lobo, lince e, curiosamente, uma falange de leão». Pausa, levanta as sobrancelhas e aperta os lábios. «Ainda não sabemos bem o que significa».

A escavação de onde provêm as centenas de fragmentos nos tabuleiros em frente a Lino André localiza-se em Vale Boi, ao pé de Vila do Bispo, no Algarve. A ocupação deste lugar foi regular entre 33 mil e 7 mil anos atrás.

No tabuleiro, há muitos montinhos de fragmentos de conchas, que mostram a importância do marisco e do peixe na dieta destes grupos. Aliás, pensa-se que a proximidade ao litoral foi também um critério de escolha deste local pelos bandos de caçadores-recoletores.

O que também terá contribuído para a escolha deste lugar foi a proximidade a uma linha de água, onde os animais se juntavam para beber, o que facilitava a caça. «Num ponto mais alto, no topo da vertente, foi encontrado o local que funcionava como abrigo. Seria uma reentrância em rocha calcária onde se abrigavam e teriam uma visão privilegiada sobre o vale da ribeira».

Encontrar estas jazidas não foi fácil, dado que não existem estruturas edificadas. Até meados dos anos 90, quase não havia dados da ocupação humana no Paleolítico no Sul de Portugal. A descoberta dos sítios arqueológicos pré-históricos no Algarve foi fruto de uma campanha de prospeção levada a cabo por Nuno Bicho, arqueólogo e diretor do ICArEHB. Durante esta campanha, procurou locais de possíveis abrigos, próximos de cursos de água e do litoral, onde também houvesse fontes de sílex para o fabrico de utensílios.

Lino André explica o fascínio pela tarefa de separar fragmentos. «Só eu é que tenho esta visão de conjunto, porque sou eu que separo os fragmentos por matérias-primas. Vejo pela primeira vez o que há e o que é mais abundante. É como se a primeira descoberta só fosse verdadeiramente feita agora. Depois cada pessoa analisará apenas uma fracção». Os materiais individualizados são embalados, etiquetados e inventariados. É mais uma vez um trabalho que exige grande concentração e paciência.

Os objetos simbólicos

Este pedaço é uma pedra do solo ou é um fragmento de um utensílio? Esta concha está partida ou tem um furo feito por humanos? Esta distinção só pode ser feita por alguém com formação específica e muita experiência.

As peças com interesse são separadas, fotografadas num local à parte, descritas e rigorosamente medidas. Uma a uma. É necessário identificar as espécies animais a que pertencem as peças utilizadas para a produção dos artefactos, recorrendo à bibliografia e a exemplares das coleções de referência.

«Nalguns casos, pedimos ajuda aos colegas do Departamento de Ciências Biológicas, que têm sido sempre muito prestáveis. Há exemplares que são sub-fósseis e já perderam as características cromáticas, tornando mais difícil a sua identificação. As conchas mais comuns são as litorinas (burriés)».

De vez em quando, um sorriso muito subtil, os olhos brilham, é uma concha furada. «São só conchas, como as que encontramos hoje na praia, mas há algo de muito raro nestas». Lino separa estas conchas furadas e leva-as para outra secretária, onde há uma lupa ligada ao computador. Agora precisa de verificar se o orifício é natural ou se foi feito pelo homem, se tem marcas de desgaste. Quer saber qual terá sido a tecnologia usada para fazer a perfuração. O que podia suportar estes adornos já desapareceu. Podia ser feito de crina de cavalo, fibras vegetais, tiras de couro. Não se sabe.

As peças que se assume terem servido para adorno corporal são uma das vertentes da arte móvel. Esta faz parte da investigação em torno das origens do simbolismo e génese da arte que caracterizam o homem anatomicamente moderno. «Desde o remoto momento em que, através do pensamento, foi adquirida a capacidade de abstração, abriu-se caminho para o simbólico», pode ler-se na tese de Frederico Tatá Regala, vencedor do prémio de Arqueologia e Evolução Humana em 2016, num estudo acerca dos adornos descobertos em Vale Boi.

«Nos dias que correm, a pulseira que simplesmente embeleza o pulso tem um simbolismo muito diferente da aliança de casamento ou das divisas militares e, apesar desse facto, todos estes elementos se poderiam enquadrar na categoria de adornos».

A comparação entre os adornos encontrados em Vale Boi e outras jazidas arqueológicas da mesma época aponta para a chegada deste grupo de humanos a partir do Mediterrâneo Ibérico, substituindo a anterior população Neandertal (independentemente da possibilidade de mistura entre as duas populações), conclui um estudo do ICArEHB publicado este ano na revista Quaternary International. Estes são os primeiros homens anatomicamente modernos, os nossos Adões e Evas, e usavam colares de conchas.

Enquanto está no laboratório, Lino André não pensa em todas estas implicações. Está focado em cada peça, com a sua música nos auscultadores e abstraído dos problemas quotidianos. «É terapêutico». Da sua mesa, Lino olha em frente. O que se vê são caixas e caixas de sacos de plástico em estantes altas. «São como uma base de dados. Está tudo muito organizado. Não há braços e olhos para tanta coisa. Fica para quando se conseguir. Se não for eu, será outro».

 

Autora: Ana Matias, Geóloga Costeira e investigadora do Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve

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