O clube de leitura «O Prazer da Escrita», do qual eu e o David Roque somos curadores desde 2020, encerrou o ano de 2024 com uma conversa literária sobre Misericórdia de Lídia Jorge. A autora juntou-se a nós num encontro online com mais de uma centena de leitores: uma conclusão perfeita deste ciclo de dois anos dedicado a escritores portugueses.
Com afabilidade, sapiência e humanidade, Lídia Jorge partilhou connosco que encontrou dificuldades em definir o tom para esta obra — uma fusão de biografia, livro de memórias, diário e poesia, inspirada pela vida e morte da sua mãe. «Leiam como uma personagem ficcionada e que me deixem para mim saber qual a distância entre a verdade e a realidade», disse. Foi exatamente assim que li Misericórdia.
Tal como a autora enfrentou o desafio de moldar esta narrativa, também demorei a encontrar o timbre certo para escrever esta resenha. Que dizer sobre um dos livros portugueses mais premiados da atualidade que ainda não tenha sido dito? Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB, Prémio PEN Clube Português de Narrativa/DGLAB, Prémio Urbano Tavares Rodrigues, Prémio Literário Fernando Namora/Estoril Sol, Prémio Médicis Estrangeiro: a lista é impressionante. Mas os prémios, embora merecidos, são apenas reflexos. O valor está no que esta obra nos faz sentir. Repito: no que nos faz sentir.
Após as suas 457 páginas, entrei em ressaca literária. Demorei a encontrar um livro que me cativasse de novo. As imagens de Dona Alberti persistiam: o saco de pano dos segredos ao pescoço, a charrete, a noite escura que a perseguiu da primeira à última página. Este é o poder de um grande livro: acompanha-nos, mesmo depois de fechado, recusa-se a ser esquecido, a ficar simplesmente na prateleira.
Para quem conhece a obra de Lídia Jorge, Misericórdia revela uma escrita mais clara e eficaz, sem perder a profundidade nem o lirismo. Talvez pela urgência dos temas: a finitude, a dignidade humana, a amizade, os últimos amores. Talvez pela forma como a dor e a memória se entrelaçam. Como em A Louca da Casa, de Rosa Montero, Lídia Jorge explora os limites entre a vida, a criação artística e a literatura, num jogo que ora conforta, ora desassossega — sempre sem respostas definitivas.
A obra surpreende também pelo humor subtil e pela ironia que atravessa a tragédia. É um espelho dos outros, mas também nosso, como se lêssemos um livro dentro do livro.
«Eu sou daquelas pessoas que não pensa que a esperança é a última a morrer. Eu penso que a esperança é simplesmente imortal». Esta frase resume a essência de Misericórdia: o confronto com a inevitabilidade da morte e a busca de redenção. Não é um livro sobre idosos num lar, mas uma meditação sobre a existência humana e a persistência da alma.
«No entanto não vinha com semblante mau. Trazia as asas caídas como se viesse em paz e em modo de pessoa». Palavras que ecoam para além da página. Leem-se, sentem-se, assimilam-se, e o leitor nunca mais será o mesmo. O que lemos e deixa vestígios na alma ficará timbrado na memória.
Se ainda não leu, leia Misericórdia, um livro que permanecerá.
«Misterioso é o sentimento da misericórdia: não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano».
Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária