Please ensure Javascript is enabled for purposes of website accessibility
Sul Informação - Vem aí a inteligência artificial!

Inteligência humana e inteligência artificial: A passagem para a outra margem

Um dos aspetos mais relevantes no grande universo da transformação digital diz respeito à inteligência artificial (IA), mais propriamente ao seu desenvolvimento e à sua conexão com a inteligência humana (IH).

Nesta matéria a literatura já consagrou a distinção entre uma “inteligência artificial fraca”, traduzida numa simples ligação mecânica à inteligência humana, e uma “inteligência artificial forte”, traduzida numa verdadeira hibridação com a inteligência humana e a caminho de uma outra filosofia da humanidade.

A este propósito, as minhas duas últimas leituras deixaram-me um sabor amargo e sentimentos ambivalentes. O livro “La Guerre des Intelligences”, de Laurent Alexandre (2017), contrapõe a inteligência humana à inteligência artificial e deixa pairar no ar algumas interrogações acerca dessa coabitação. “O mito da singularidade”, de Jean-Gabriel Ganascia (2017), descodifica o mito associado à inteligência artificial e esclarece alguns dos medos anteriores. Eis algumas breves reflexões a propósito.

Banner lateral albufeira

 

A linha da convergência tecnológica

 

Tudo leva a crer que teremos um “largo futuro” à nossa frente. O grande mito “NBIC” (nanotecnologia, biotecnologia, informática, ciências cognitivas) da convergência tecnológica parece disposto a provar que o ser humano é pura transição, uma máquina neuronal gigantesca onde o processo de evolução prevalece sobre a forma humana em cada momento: do ser natural ao ser melhorado, do ser biónico e ao ser pós-humano, ou seja, do humanismo ao transumanismo e deste ao pós-humanismo.

Neste contexto de convergência tecnológica, estaríamos nós disponíveis para alienar a nossa inteligência racional, transferindo-a para dispositivos tecnológicos exteriores, e a nossa inteligência emocional em redes sociais devidamente programadas e acondicionadas para nosso próprio conforto?

Se a resposta for afirmativa estaremos no reino da inteligência artificial e das suas múltiplas realidades aumentadas e, talvez, à beira de uma grande oportunidade para a apoteose do espírito e o reino da criação em todas as suas dimensões. Mas será mesmo assim?

Na linha da convergência tecnológica, um território novo onde prevalece a sociedade automática e algorítmica da revolução digital, os indivíduos são, cada vez mais, considerados “agregados temporários de dados brutos”, isto é, um objeto e um perfil quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial.

Seremos parte de um “modelo extrativista” em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade. Tudo em nome e para os fins da sociedade hipercompetitiva e performativa em que vivemos.

Nesta sociedade automática e da convergência tecnológica os algoritmos são uma espécie de próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do saber, mas, também, a proletarização de muitas classes profissionais e intelectuais. A sociedade da convergência tecnológica é, portanto, uma sociedade altamente paradoxal, com inúmeros conflitos políticos e sociais a perfilarem-se no horizonte próximo.

 

2045, a inteligência artificial e o mito da singularidade

 

Vivemos o tempo das tecno-profecias, sendo os dirigentes das grandes plataformas digitais os profetas pregadores do nosso tempo. De resto, a cadeia de valor das grandes plataformas é cada vez mais clara: os profetas apregoam as grandes promessas tecnológicas, o mercado das promessas converte-se em necessidade e transforma-se em mercado das inovações, o futuro mitifica-se em singularidade e, logo de seguida, somos capturados pelo determinismo apoteótico das grandes plataformas, onde já reina a religião da eternidade. E nesta sequência até já temos uma data mítica (2045), denominada “o ponto de singularidade”, para podermos afirmar no espaço mediático essa verdadeira apoteose que é a “passagem para a outra margem”, isto é, a transição do humanismo para o transumanismo e o pós-humanismo.

E porquê um futuro tecnológico tão promissor acompanhado de um bilhete de passagem para a eternidade? Por que é absolutamente necessário continuar a alimentar a bolha das grandes capitalizações bolsistas em ordem a recuperar investimentos extraordinariamente volumosos e a convencer as sociedades de capital de risco de que é fundamental renovar os financiamentos e continuar a apostar no grande mercado tecnológico da inteligência artificial.

Nesta longa seta do tempo, somos seres em permanente transição: do homem da “evolução natural” ao homem aumentado, do homem aumentado ao transumanismo (a inteligência artificial fraca), do transumanismo ao ponto de singularidade (a passagem para a inteligência artificial forte), do transumanismo ao pós-humanismo (uma nova espécie humana, um produto híbrido da biotecnologia). É como se a vida fosse uma categoria líquida onde o processo se sobrepõe à forma e à substância.

Nas palavras de Laurent Alexandre estamos numa espécie de competição ou guerra das inteligências. Nesta corrida ao produtivismo biotecnológico os humanos ficariam irremediavelmente para trás e a capacidade exponencial das máquinas não teria comparação com as limitações dos pobres seres biológicos que nós somos. Nesta medida, o ser humano seria uma espécie de máquina com distintos componentes e estruturas, um todo complexo que não é capaz de verdadeira liberdade, ou seja, um pré-determinismo observável nos seus sistemas neuronais.

Digamos que com este futuro “tão promissor e performativo” nada poderá impedir que tomemos o caminho de Deus em busca da eternidade.

 

A insustentável leveza do espírito

 

No reino da inteligência artificial e das suas múltiplas realidades aumentadas, a insustentável leveza do espírito é o que aí vem, uma grande oportunidade para a apoteose do espírito e o reino da criação em todas as suas dimensões. E se, para lá do ponto de singularidade, estiver um grande empreendimento espiritual e, mesmo, uma libertação das nossas raízes biológicas, em direção a uma nova religiosidade e espiritualidade, inclusive, uma nova espécie humana com outra antropologia, moralidade, ética e estética?

Não temos resposta para esta interrogação, mas depois desta incursão vertiginosa pela inteligência artificial, é preciso regressar ao princípio da “justa medida” e tentar colocar as perguntas certas na relação entre inteligência humana e inteligência artificial que é, afinal, o cerne da questão.

A inteligência, tal como a entendemos, é, essencialmente, o fruto do cruzamento de uma base biológica com um complexo simbólico e cultural impossível de ser reproduzido artificialmente. O mito da inteligência das máquinas é, apenas, a sua capacidade para simular a inteligência humana, pois a autonomia técnica e lógica não se confunde com a inteligência racional e emocional dos humanos. Somos nós que inventamos o código e é dentro de um determinado código de linguagem que as máquinas e a inteligência artificial trabalham. Podem aperfeiçoar mecanismos de aprendizagem e categorizar a informação, mas não alteram o código com que trabalham.

Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, os melhores princípios ainda são a prudência e a moderação perante um futuro cada vez mais performativo no que diz respeito à tecnologia. Somos seres conscientes dotados de intenção, intuição, reflexão e sentimentos e, no plano ético, os limites da consciência e a consciência dos limites é a nossa norma-padrão e, também, a regra base para lidar com as relações entre IH e IA. No limite, a inteligência artificial até pode simular algumas destes atributos, mas a possibilidade de cair no ridículo é ainda mais iminente. O mesmo se diga em relação à auto-regulação de sistemas automáticos ou mesmo autónomos.

 

Notas Finais

 

E se nesta sociedade humana ser eticamente responsável e politicamente avisado for, mesmo, o caminho mais difícil? Como podemos nós enfatizar as virtudes da prudência e da moderação quando nos propõem, em contraponto, a esperança da eternidade e da imortalidade? E se a base democrática das instituições em que assentam aquelas virtudes estiver perigosamente ameaçada por movimentos populistas e democracias duras e iliberais? E se, neste contexto, a sociedade humana optar por escolher o caminho mais curto, aquele que nos levará até à “cidade dos anjos” pela passagem do transumanismo e da pós-humanidade?

Se assim for, então, teremos de perguntar qual é a máquina inteligente que mais nos convém, aquela que nos tornará feliz e nos acompanhará para a vida inteira!!

Convenhamos que a inteligência humana parte em desvantagem nesta longa maratona das inteligências. Seja como for, se quisermos uma regulação ética e uma ética da regulação, não nos podemos deixar abater pela guerra das inteligências, pela morte da morte, pela edição genómica da humanidade ou pelos implantes nos interfaces cérebro-computacionais. Não temos alternativa. Teremos de ir para o campo de batalha e recriar a teoria do agir comunicacional no espaço público em nome da “estranha ordem das coisas” (Damásio, 2017), pois a nossa vantagem continua a ser essa interação favorável e desfavorável de sentimento e de razão que levou os seres humanos a criar a cultura, arte, sistemas morais, justiça, ciência, economia política e governação.

Finalmente, numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada as perguntas certas parecem ser as seguintes: quais são as complementaridades e os limites que se impõem entre uma IH consciente e uma IA logicamente subordinada, como repartir, com justiça e equidade, o valor criado pela IA em termos de riqueza e emprego, como impedir que os “erros e a estupidez artificiais”originem acontecimentos fortuitos e danos colaterais graves, como impedir que algumas formas de IA se convertam em cúmplices do cibercrime e da insegurança de indivíduos, povos e nações, como evitar que o espaço público seja tomado pelo medo e a desesperança quanto ao seu próprio futuro e, a partir do momento em que todos somos ou acreditamos ser imortais, como impedir que a governação algorítmica e a administração do Big Data provoquem mais discriminação, enviesamento e exclusão sociais, uma verdadeira guerra civil das inteligências?

Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, a coabitação entre várias formas de IA precisa de um enquadramento institucional apropriado, donde a necessidade de um forte contencioso de responsabilidade perante órgãos arbitrais, instâncias regulatórias e judiciais.

Na era digital e automática da convergência tecnológica, abrir a Caixa de Pandora ou esfregar a Lâmpada de Aladino pode ser uma operação de alto risco. Cuidado, pois, com a armadilha do narcisismo digital. Não deixemos que a inteligência artificial tome conta da nossa inteligência racional, não deixemos que a arte emocional das relações humanas seja trocada pela caricatura de uma bricolage social, renovemos o princípio da precaução e a ética do cuidado, vivamos a vida ao quotidiano nas nossas comunidades offline e sempre que necessário acionemos o “direito de desligar”.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

festas da cidade de olhao

Também poderá gostar

Miguel Gago

Algarvio Miguel Gago eliminado na estreia nos mundiais de Judo

Sul Informação - Portimão abre inscrições para programa de Férias de Verão

Portimão abre inscrições para programa de Férias de Verão

Sul Informação - Faro e Beja acolhem concentrações “Não queremos viver num país do medo”

Faro e Beja acolhem concentrações “Não queremos viver num país do medo”